Armageddon Time

O começo de uma era*

Nos Estados Unidos do nascer dos anos 1980, o jovem Paul (Banks Repeta) cresce em uma família judia em meio à Guerra Fria, às portas da eleição do republicano e conservador Ronald Reagan. Armageddon Time, novo filme do aclamado cineasta norte-americano James Gray, já em cartaz nos cinemas brasileiros, é uma história de formação e amadurecimento conduzida com classe e apuro técnico.

Paul é um garoto esperto, um tanto atrevido e questionador, mas em certa medida gentil. Quer experimentar o mundo com a sua inocência, mas vai encontrar um ambiente com mais contradições e hostilidades do que imaginava – seja na escola, no bairro onde vive e na própria família. É sob seu olhar que o filme registra uma época de mudanças na sociedade americana e faz isso interrogando certos valores morais que serão postos no caminho do personagem.

Logo de início, vemos o garoto começando as aulas em uma escola pública, dada a condição financeira emergente de sua família – imigrantes poloneses que vieram fugidos da ameaça nazista tempos atrás. Ali, Paul se depara com crianças de diversas realidades sociais, inclusive inferiores à sua. Ele acaba construindo uma amizade com Jhonny (Jaylin Webb), um garoto negro de uma família muito humilde.

No âmbito familiar, também surgem divergências. O garoto possui uma tendência para as artes, através do desenho, mas a família deseja algo mais formal para o garoto, caminho seguido por seu irmão mais velho que já estuda em uma escola de elite para onde, futuramente, pretendem enviar Paul. Os pais (vividos por Anne Hathaway e Jeremy Strong) representam os típicos genitores que desejam ver seus filhos em posições melhores que eles próprios, a despeito das vontades individuais de cada um.

Enquanto crescem os embates ideológicos e comportamentais de Paul com seus pais, o garoto desenvolve laços muito fortes com seu avô, interpretado pelo grande Anthony Hopkins. O patriarca da família parece ser a única pessoa que Paul escuta na sua sanha rebelde de questionar certas moralidades de uma sociedade prestes a entrar em um momento de maior conservadorismo com a chegada de Reagan ao poder.

As conversas do garoto com o avô, aliás, são um dos melhores momentos do filme. Hopkins, do alto de seu talento, consegue emitir uma personalidade de respeito e autoridade, ainda que mantenha a candura e a compreensão na maneira de conversar com o neto abertamente e de lidar com as dúvidas e questionamentos que Paul lhe apresenta.

Subtexto racial

Uma das principais questões que se colocam nesse momento para ele está ligada à sua relação com Johnny. É o tipo de amizade aparentemente improvável, mas que ganha corpo pela união espontânea dos dois, já que ambos sofrem bullying no colégio. É claro que por motivos diferentes, já que a questão racial impacta muito mais a vida de Jhonny.

O filme observa essa relação com apreço e simpatia, mas sem deixar de sublinhar as brutais diferenças sociais que existem. A própria ideia de racismo vai, aos poucos, se formando no filme à medida que Paul começa a perceber a maneira como o amigo é tratado, a estranheza e as pequenas violências que Johnny sofre por parte dos demais – tanto os colegas de classe, quanto dos adultos –, especialmente quando Paul passa a ser hostilizado justamente pela proximidade com o garoto negro. E as coisas só tendem a ficar mais graves no decorrer do filme.

Gray utiliza essa relação para fazer um estudo mordaz de uma sociedade desigual que se revela nas suas discriminações cotidianas. Pouco vemos, de fato, o dia a dia de Johnny fora da companhia de Paul e da escola onde é desprezado. O filme não mostra a sua rotina em casa, as suas relações e afetos – há apenas uma cena do garoto ao lado da cama de sua avó adoentada.

Nesse sentido, o filme evita um olhar paternalista sobre essa relação e também sobre o próprio Jhonny. Não romantiza as dores e sofrimentos do garoto, tampouco as escancara na trama. O que importa ao olhar de Gray aqui é a maneira como uma sociedade às voltas com o conservadorismo lida e trata as “minorias” raciais e o quanto isso reverbera no comportamento da sociedade estadunidense atual.

Sociedade fraturada

Armageddon Time é certamente o filme mais político de James Gray. Seus dramas intimistas já foram mais intensos, em filmes anteriores como Amantes e Ad Astra. Esta nova produção possui uma estrutura mais clássica e uma cadência mais branda, e nem por isso deixa de ser uma obra menor do cineasta. Até mesmo a fotografia do filme possui um tom mais carregado e denso.

Aqui, as discussões são mais amplas, a partir desse microcosmo da vida de Paul que não deixa de refletir as estruturas de uma sociedade que caminha para um sentido cada vez mais individualista na maneira de tratar o crescimento individual, as carreiras profissionais e o sentimento de pertencimento de grupo.

Nessa balança, a amizade de Paul e Johnny, em algum momento, teria que se confrontar com algo muito mais brutal e urgente em termos de entendimento das relações interpessoais que esbarram nos confrontos raciais, justamente o que acontece ao final do filme. O maior aprendizado para Paul está nas limitações de suas atitudes enquanto sujeito branco, ainda que judeu, apto a fazer uso de seus privilégios.

Gray usa a história de Paul – misturada às suas próprias lembranças quando criança em um filme de forte teor autobiográfico – para observar um ponto de virada de uma sociedade e suas desigualdades latentes. É o retrato de uma época, um filme de formação, mas sobretudo uma peça moral sobre os valores que queremos construir, e aqueles que devemos rejeitar, enquanto coletivo social.

Armageddon Time (EUA/Brasil, 2022)
Direção: James Gray
Roteiro: James Gray

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 15/11/2022)

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