Olhar de Cinema: O Policial e a Pastora

Destacar visões contra-hegemônicas parece ser, a princípio, o intuito da diretora Alice Riff no seu novo filme, O Policial e a Pastora. Pois ela elege dois personagens muito ímpares de alguma forma ligados a grupos conhecidamente reacionários, respectivamente as forças policiais e uma comunidade evangélica, para lhes dar voz e rosto diante dos discursos conservadores crescentes na sociedade brasileira nos últimos anos. Alexandre e Valéria assumem publicamente posturas muito críticas em relação aos espaços em que estão inseridos (no caso dele, seu próprio local de trabalho) e acabam sendo retaliados por isso.

Mas o filme encontra outro ponto de conflito que se soma a esse: ambos os personagens se preocupam com a maneira como serão retratados pelo filme, o que sugere um tensionamento deles com a diretora. Riff faz questão de destacar esta preocupação deles e faz disso também o conteúdo do filme. São, portanto, dois campos de conflitos, que se imbricam, desdobrados a partir da experiência particular de dois personagens, cada qual com tempo igual de tela – a diretora não usa montagem paralela, mas divide o filme em blocos únicos para contar a história de cada um.

Em um filme de uma hora, a diretora os interpela em sua intimidade, enquanto faz surgir essas contradições todas, para dentro e fora do filme. Ou, ao menos, é o que o projeto tenta construir no pouco tempo que nos deixa em companhia dessas pessoas, também a partir da interlocução da diretora que narra o filme e aparece em cena constantemente. Por mais que esses conflitos acentuem-se no decorrer do longa e nas falas de Riff, pouco desse suposto tensionamento parece ganhar consistência de fato ali.

Em dois momentos distintos, cada um deles endereça à diretora certas posições e/ou pedidos sobre a forma como eles devem ser retratados no filme. Ele diz que só aceita fazer o filme se não for construído como herói nem como figura exótica; já ela “dirige” Riff em uma cena, direcionando onde a cineasta deve ficar enquanto lê um depoimento próprio sobre sua vida. Tais embates prometidos aí nos momentos iniciais do bloco narrativo de cada um não chegam a ganhar maiores contornos e discussões ao longo do filme, como se desaparecessem na medida em que a própria diretora conquista a confiança deles.

E, mais do que isso, a relação conflituosa dos personagens com seu grupo de convívio, cerne do ponto de partida e central do longa, também fica aquém das discussões que mereciam povoar mais o filme. Somam-se a isso as particularidades e idiossincrasias que cada um daqueles contextos convoca para o debate, desdobrado pelas individualidades daquelas pessoas em específico. Tudo isso exige do espectador percepções e avaliações que o filme não nos permite acessar – quando estamos nos habituando à visão de mundo deles, conhecendo melhor seus pontos de vista, suas histórias se interrompem. São como duas rotas de interesse temático que precisam ser encaradas com maior cautela pelo delicado do tema. Não é que o filme se descuide no tratamento, mas falta muito mais para um retrato mais consistente daqueles dois indivíduos.

O lugar de intimidade que a diretora conquista junto a eles (mais até de Valéria, obviamente pelas pautas feministas) talvez aponte ara certa domesticação do retrato que o filme acaba fazendo deles – o termo é providencial, já que quase todo o filme se passa dentro das casas de ambos. Quando tanto se reclama da longa duração dos filmes atuais e de como muitos diretores se alongam mais do que o necessários em muitas produções por aí, O Policial e a Pastora segue um caminho oposto e peca pela falta.

O Policial e a Pastora (Brasil, 2023)
Direção: Alice Riff
Roteiro: Alice Riff e Larissa Ribeiro

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