Olhar de Cinema: O Estranho

Guarulhos é uma mata. Assim era em 1590 como o é agora em 2023, mesmo que a grande estrutura do aeroporto que ganha seu nome tenha tomado e transformado a paisagem, a despeito de suas fortes raízes indígenas. O Estranho, filme de Flora Dias e Juruna Mallon, encontra uma maneira muito original e nada didática de lidar com um passado de extermínio e expulsão dos povos nativos, partindo daquilo que fica incrustado na memória e nos pontos de resistência que ainda pulsa em certos indivíduos.

O “estranho” aqui não é o esquisito ou insólito, mas aquele que é estrangeiro, de fora (e não seríamos todos?). Para um local que hoje abriga um aeroporto (o maior da América do Sul e um dos mais movimentados da América Latina), o que não faltam são pessoas estrangeiras, em muitos sentidos, que trafegam diariamente pelo lugar. Ao focar em alguns personagens que trabalham no local, muitos deles moradores dos arredores, o filme investiga o sentido das raízes, especialmente na pessoa de Alê (Larissa Siqueira), mulher que parece transcender sua existência no decurso do tempo (mais uma vez, algo que talvez valha para todos nós).

Ela trabalha no transporte de bagagens do aeroporto e possui uma comunhão com a terra, com suas origens e com um sentimento de pertencimento, uma busca constante que ela empreende no seu cotidiano. Também experimenta uma conexão amorosa com Silvia (Patricia Saravy), esteticista que atende no aeroporto. Alê quer estabelecer um vínculo mais forte com ela, mas mais ainda com sua ancestralidade. A relação das duas é bonita, ao mesmo tempo que difusa, sem amarras, e é o fio narrativo que segue por caminhos nada previsíveis.

O Estranho trafega por registros distintos – especialmente no terço final –, nem sempre mastigados pelo filme. Aquilo que pode parecer uma confusão de comentários desamarrados e diálogos entre muitos outros personagens em situações diversas e soltas na trama, está muito mais alinhado ao tema central da investigação das origens ancestrais e indígenas do que possa parecer a princípio. É um filme que não se forma como um todo (talvez na sua dimensão conceitual apenas), mas no conjunto dos fragmentos que caminham para uma mesma direção, reverberando muitos significados e interpretações.

Há dois movimentos de reimaginação (ou o filme como um todo pode ser lido nessa chave) que o longa promove seguindo a linha de ressignificação das coisas. Primeiramente, o reposicionamento temporal que se estabelece a partir das cenas iniciais identificadas como sendo de anos distintos (1590, 1932, 1893, 1677 etc.). A mesma atriz protagonista (a mesma alma transcendente?) aparece nessas cenas, e a inquietação de Alê na contemporaneidade parece perpassar por todos esses séculos de exploração, migração e de destruição dos povos e do espaço nativo. Ela guarda rastros de memória ancestral, seja em fotos, pedras e folhas secas, como vestígios do que algum dia pertenceu a algo maior. A sua busca por um lugar onde assentar é a história de sobrevivência desses povos, continuada nela e em outros indígenas que aparecem no filme.

A segunda operação, muito mais original e fascinante de observar, diz respeito à geografia do lugar, à espacialidade do que já se transformou. As personagens brincam com as possibilidades de restituição desses espaços: uma árvore que havia ali naquele canto e não tem mais, um caminho que se abria por aqui e se fechou, a ladeira que você precisa se imaginar descendo porque o terreno já foi pavimentado. Alê diz que sua casa é aquilo ali tudo e o filme corta para a pista de pouso do aeroporto, maquinária humana que roubou dos povos originários o espaço devido para o bem da “modernidade”, tipo de operação opressiva que moldou a civilização brasileira.

Esse jogo de reapropriação de tempo e espaço faz parte da natureza do filme, é a sua grande contribuição formal para o tema, apelando até mesmo para certa sensorialidade das coisas (a força invisível que rege a cosmogonia indígena), até o momento em que decide frontalizar as discussões sobre posse e pertencimento, convocando pessoas indígenas para isso. O simbolismo dos gestos e da procura dá lugar a quem, de fato, precisa falar, os donos da terra. Sobra-nos a disposição para seguir buscando raízes e continuidades. Um lugar no tempo-espaço onde será possível assentar em paz.

PS: muito curiosamente, no mesmo dia em que vi esse filme, assisti também ao média-metragem O Muro dos Mortos, de Eugène Green. Entre tantas ideias, o cineasta franco-americano resgata a posição radical de dissolução do tempo de Santo Agostinho para quem, a grosso modo, existe apenas o presente das coisas passadas, o presente das coisas futuras e o presente das coisas presentes. Parece que ele estava falando desse filme aqui.

O Estranho (Brasil/França, 2023)
Direção: Flora Dias e Juruna Mallon
Roteiro: Flora Dias e Juruna Mallon

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