O Mel é Mais Doce que o Sangue
O poeta e dramaturgo espanhol Federico García Lorca foi vítima da Guerra Civil Espanhola, preso e fuzilado de forma covarde e atroz. Seu corpo teria sido enterrado em vala comum. É a partir da ideia do corpo de um poeta que se espalha na terra como semente que nasce O Mel é Mais Doce que o Sangue, de André Guerreiro Lopes. A obra poética de Lorca funciona como fio condutor para um filme que adora se perder pelos caminhos da poesia e da rua, mas tem os pés muito firmes na sua proposição temática: a arte como contraponto (ou seria confronto?) às forças do conservadorismo e da sombra fascista, essa que ronda a ideologia ultradireitistas. Helena Ignez vive uma espécie de andarilha ancestral que oferece um espetáculo visual dentro de uma caixa ambulante (uma câmera escura mais que luminosa e lúdica), e seu corpo dança e encara a multidão (inclusive os patriotas de plantão e de fachada). Mas isso é só um dos campos de força do filme que se desdobra em muitos registros e visualidades distintos, na maior parte deles encontrando uma tradução audiovisual muito bonita e nada óbvia para os textos de Lorca e para a força de resistência que advém da boa e bela arte.
O Mel é Mais Doce que o Sangue (Brasil, 2023)
Direção: André Guerreiro Lopes
Roteiro: André Guerreiro Lopes e Antônio Arruda
O Muro dos Mortos
No muro externo de um cemitério em Paris, uma extensa placa leva grafada o nome de centenas de milhares de soldados mortos que lutaram ao lado da França na Primeira Guerra Mundial e cujos corpos não foram encontrados. Um deles, o jovem Pierre (Édouard Sulpice), retorna no presente, encarnado pela força da palavra de outro jovem, Arnaud (Saia Hiriart). O que conecta os vivos e os mortos, afinal? Essa e outras questões permeiam essa belíssima parábola que é O Muro dos Mortos, do mestre Eugène Green, construído sob a égide da dissolução do tempo defendida por Santo Agostinho. A palavra – força motriz do cinema de Green – é o que move os personagens nos seus anseios de reparação, especialmente da parte de Pierre, imbuído da vontade de reatar laços e fazer seguir a vida – justo ele, morto. Em menos de uma hora, a jornada desses dois jovens se entrecruzam, e Arnaud se dá conta de que o abrandamento dos sofrimentos de um pode ajudar a sanar a angústia do outro. Este “outro” se imbrica no “eu”, assim como o tempo se imbrica em si mesmo. Como nos ensina Santo Agostinho: existe apenas o presente das coisas passadas, o presente das coisas futuras e o presente das coisas presentes. Assim, todos vivemos na memória do tempo.
O Muro dos Mortos (Le Mur des Morts, França, 2022)
Direção: Eugène Green
Roteiro: Eugène Green
Mudos Testemunhos
Se no filme guineense No Cemitério do Cinema, também exibido na programação do Olhar de Cinema, os arquivos audiovisuais constituem matéria de busca do realizador Thierno Diallo, em Mudos Testemunhos, eles são a sua matéria-prima. Trabalho de arqueologia e reformulação narrativa, o longa é uma colagem de diversos filmes da era muda do cinema colombiano. O projeto foi levado a cabo por muito tempo por Luis Ospina, nome fundamental do cinema na Colômbia, em parceria com Jerónimo Atehortua. Ospina faleceu antes de ver o longa finalizado, trabalho que coube a seu codiretor. E é mais do que visibilizar as películas antigas do cinema do país, mas reconstruí-los a ponto de gerar um filme novo, imaginável apenas na sua reconfiguração atual. Os diretores pegaram trechos de filmes distintos e trataram de costurar uma narrativa única a partir desses excertos, a fim de dar forma a um outro filme, com personagens e conflitos muito bem desenhados (um triângulo amoroso, com direito a paixões impossíveis e tragédias pessoais). O resultado, mais do que a constituição de um novo produto narrativo, é a potencialização das imagens do passado enquanto documentos históricos capazes de revelar as dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais de um país. Em dado momento, o protagonista do filme, diante do fracassado enlace amoroso, escreve a sua amada e diz que eles não foram o que poderiam ter sido. Pois Mudos Testemunhos nos pergunta: o que o (nosso) cinema poderia ter nos dado?
Mudos Testemunhos (Mudos Testigos, Colômbia/França, 2023)
Direção: Luis Ospina e Jerónimo Atehortúa
Roteiro: Luis Ospina, Jerónimo Atehortúa e Juan Mora