As marcas autorais que solidificaram o nome de Nuri Bilge Ceylan no cinema mundial estão todas em Ervas Secas, o que não significa um resultado final tão bom quanto seus trabalhos anteriores. O filme se passa numa vila no interior da Anatólia; as paisagens continuam inóspitas e gélidas, assim como rancorosas e infelizes continuam sendo as relações entre as pessoas que povoam as histórias que o diretor gosta de contar.
Ceylan é essencialmente um estudioso da alma humana, de seus vícios e intransigências, e cada filme seu é uma jornada ao interior de almas em conflito. O peso da vez recai sobre Samet (Deniz Celiloglu), um professor já perto da meia-idade que dá aulas para crianças e pré-adolescentes na escola de uma pequena vila no interior do país. Ele quer muito ir morar e trabalhar na capital, mas demora a ser transferido. Um incidente envolvendo suas alunas acaba atrasando ainda mais os seus planos.
Pois certo dia, Samet é surpreendido com a notícia de que uma de suas alunas acusou ele e outro professor, amigo seu, de estarem tendo comportamentos incomuns para com ela e outra colega de classe. Com isso, Ervas Secas parece caminhar para a trama sobre assédio – ainda que as reclamações sejam de abraços e aproximações levemente mais íntimas, como mãos nos ombros e costas, o que, em um país ultraconservador como a Turquia, pode ser considerado motivo de grande constrangimento, especialmente entre homem e mulher, acrescido aqui da diferença de idade.
Mas Ceylan não está interessado nas minúcias desse caso em específico – as denúncias sobre assédio sexual, como tema, têm se tornado comum no cinema nos últimos anos, evidentemente por conta da maior mobilização feminina diante desses casos. Ainda mais porque o filme nunca revela tais cenas, com os possíveis comportamentos reprovadores, daí nunca sabermos de fato o que aconteceu realmente entre professores e alunas e com quais intenções. O filme faz disso mais um incidente detonador dos conflitos pessoais, com desdobramentos muito mais internos e (auto)questionadores.
Com isso, o professor se enxerga contra a parede, reavaliando sua posição naquela escola (e também no mundo, porque nos filmes de Ceylan os personagens nunca perderão a oportunidade de refletir, com densidade e em longas conversas, sobre coisas profundas que cercam suas escolhas, os acasos da vida e as regras morais e/ou religiosas que regem seu comportamento social). Acima de tudo, Samet passa a detestar ainda mais a vida que leva, bem como os alunos e a pequena cidade rural. E ele não esconde isso, revelando inclusive uma atitude agressiva dentro da escola, em alguma medida bastante revanchista, denotando certa imaturidade ao lidar com o caso – ele próprio parece demorar a entender os reais motivos que levaram às acusações, quando eles já foram explicitados pelo filme – e têm a ver com certa vontade de retaliação por parte das estudantes.
Isso faz de Ervas Secas uma trama que gira ao redor das implicações morais que Samet passa a ruminar, um tanto quanto repetitivas e pouco inspiradas até, sem a força dos embates que encontramos nos filmes anteriores do cineasta. O procedimento é o mesmo de obras incríveis – e longuíssimas – como Sono de Inverno e Era Uma Vez na Anatólia, este último seu melhor trabalho até então. Num filme de quase 3h30 de duração, os embates verbais que se seguem em Ervas Secas parecem aquém da habilidade de encenação e do dialoguista que Ceylan já provou ser anteriormente.
Uma grande força do filme, no entanto, está na personagem de Nuray (Merve Dizdar – prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes). Ela é uma professora aposentada por invalidez – perdeu uma das pernas, substituída agora por uma prótese mecânica. O olhar amargo do protagonista para o mundo encontra em Nuray uma forma de ampliação e ela acaba sendo uma ótima interlocutora para a dupla de professores – certa tensão sexual se insinua ali também, mas de modo muito comedido, numa cultura como a turca.
Ceylan passa ao largo desse vespeiro – pode até ser por receio de lidar com temas mais espinhosos – e prefere uma zona de conforto que tem a fibra de seus melhores gestos de encenação (como filmar ótimos atores defendendo um texto volumoso e complexo), mas sem o mesmo brilho dos contornos existenciais de antes.
Ervas Secas (Kuru Otlar Üstüne, Turquia/França/Alemanha/Suécia, 2023)
Direção: Nuri Bilge Ceylan
Roteiro: Nuri Bilge Ceylan, Ebru Ceylan e Akin Aksu