Mostra SP: Não Espere Muito do Fim do Mundo

Atualmente existem dois Radu Jude. Um dele é mais sério e sóbrio – fez filmes duros como Letra Maiúscula, A Nação Morta e Corações Cicatrizados; e o outro chutou o pau da barraca e vem numa chave muito mais debochada e insana – esse criou filmes como Boa Sorte no Sexo ou Pornô Acidental e Não me Importo se Entrarmos para a História como Bárbaros.

Seu mais novo trabalho, Não Espere Muito do Fim do Mundo, claramente é fruto dessa segunda persona, garantia de um olhar rascante sobre a sociedade romena contemporânea, que espelha muito as vicissitudes do comportamento humano, ainda mais aquele polarizado politicamente dos últimos tempos. O traço do cinismo é o que coaduna todos os filmes desse conjunto, ou os seus personagens errantes, nesse jogo muito arriscado que o diretor constrói em torno de discursos díspares que lidam com nuances muito frágeis entre o politicamente incorreto e a denúncia da escrotidão social.

Toda a trama é centrada em Angela (Ilinca Manolache) que percorre a capital romena coletando depoimentos de pessoas que sofreram algum tipo de acidente em seus ambientes de trabalho, alguns muito sérios (perdendo membros ou indo parar em cadeira de rodas). De início, podemos imaginar que ela busca tais testemunhos a fim de denunciar os descasos em relação à segurança do trabalho, mas logo iremos descobrir que ela trabalha numa produtora de vídeo que está fazendo um material sobre como a empresa contratante cuida e presta assistência a pessoas que sofreram algum dano enquanto trabalhavam.

É esse tipo de revés a que o filme nos lança, movendo-se no seu ritmo apressado, mas sem entregar de cara suas armas, preferindo construir nuances a cada novo encontro que Angela faz e de como os personagens lidam com as questões que surgem nas conversas – que parte do acidente no trabalho a todo tipo de assunto, geralmente questões da sociedade romena e mundial. Ela percorre a cidade de carro, e o filme aproveita isso e constrói um paralelo, na montagem mesmo, com imagens de um filme romeno dos anos 1980 (Angela Keeps Going), sobre uma taxista também chamada Angela – ambas de personalidades muito distintas.

Mas as ambiguidades não param por aí. A Angela do filme atual, nas horas vagas, grava vídeos para as redes sociais usando um filtro para mudar sua aparência, a fim de não ser reconhecida, em que xinga e ofende pessoas conhecidas, de artistas a políticos, usando o palavreado mais chulo possível – misógino, homofóbico, racista, xenofóbico –, uma verdadeira metralhadora de ofensas. Ela faz isso com total desfaçatez e inconsequência, como um passatempo; quando questionada sobre o conteúdo pesado por amigos próximos que a reconhecem nos vídeos, ela diz se tratar de uma forma de ridicularizar o comportamento da extrema-direita, embora nunca saibamos de fato o que ela pensa realmente sobre tudo isso.

Longe de ativismo ou da aderência a certos discursos militantes, a protagonista assume uma postura muito jocosa diante de tudo, alcançando níveis fortes de violência verbal, o que coloca o filme em uma zona muito nebulosa entre a sátira e a denúncia, entre o cômico e o absurdo. Mas é nessa pegada que Jude a faz seguir nessa jornada de porradas para muitos lados, implodindo a noção de bom gosto – a própria protagonista parece desafeita a esse selo – e, principalmente, de bons modos.

Não Espere Muito do Fim do Mundo poderia também se assemelhar a um punhado de filmes recentes que se querem malditos e provocadores porque têm a coragem de expor e mostrar graficamente certas imagens (alô, Lars Von Trier e companhia!) e comportamentos extremos. Mas o que distingue o cineasta romeno dessa onda recente de “enfant terribles” é que Jude não apenas joga no colo do espectador os lances de hipocrisia como deboche, de modo ilustrativo; mais que isso, ele faz os personagens revirarem, mastigarem, confrontarem e intensificarem suas próprias crenças e ideologias, eles tropeçam nas suas próprias contradições, defendem seus pontos de vista nem sempre da forma mais convincente, mas o filme nunca se entrega a uma posição confortável que nos permita sermos capazes de apenas condenarmos os personagens – apenas para nos sentirmos superiores a eles.

Trata-se de uma nuance muito complexa: Angela pode ser muito destemida, por um lado, aguerrida e “de fibra”, em muitos casos, para ser apenas uma escrota na seca seguinte, sem que o filme assuma lados. Nessa toada, o filme avança por caminhos muito tortuoso, mas sempre surpreendentes e nada previsíveis, fazendo com que cada novo encontro da protagonista seja um impulsionador de muitas coisas, poucas delas gloriosas, algumas outras apenas reprováveis, mas certamente todos repletas de uma humanidade latente e palpável para os padrões da sociedade atual das aparências.

Não Espere Muito do Fim do Mundo (Nu Astepta Prea Mult de la Sfârsitul Lumii, Romênia/Luxemburgo/França/Croácia, 2023)
Direção: Radu Jude
Roteiro: Radu Jude

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