Coração vermelho*
Que bom que Nanni Moretti deixou de lado o tratamento mais pesado de seus filmes anteriores e resolveu investir num tom mais brando – o que não significa que haja menos crises no caminho. O Melhor Está por Vir, seu mais novo longa, já em cartaz nos cinemas, pode passar como algo despretensioso, mas ainda é capaz de revelar o vigor narrativo de um veterano cineasta que sabe olhar para o passado e também mirar o futuro com olhos atentos.
Ajuda muito aqui que o próprio Moretti interprete um cineasta em volto na produção de um novo filme. Giovanni é uma espécie de alter ego do diretor, com suas convicções e manias expostas em tela, mas também revigorando esse personagem inquieto, à beira de um ataque de nervos.
Na trama, o cineasta tem dificuldade para levar adiante a realização de um filme de época sobre o Partido Comunista Italiano que, nos anos 1950, precisa encarar os desmandos da União Soviética na política externa, sendo ela a célula mãe do pensamento comunista que se espalhou pelo mundo. Mais do que ver o filme dentro do filme, testemunhamos os sets de filmagem em que Giovanni precisa dirigir seus atores e lidar com as diferentes formas de pensar a representação daquele mundo, mas também com o próprio fazer cinematográfico.
Sua esposa, Paola (Margherita Buy) é também sua fiel produtora, que cuida para que tudo esteja de acordo aos desejos e vicissitudes do diretor seu marido. Mas a vida pessoal de Giovanni também entra na equação das crises a gerenciar, uma vez que Paola está cada vez mais afastada – e ainda está trabalhando na produção do filme de um outro diretor, novato e cheio de ideias “modernas” sobre o cinema.
O Melhor Está por Vir poderia ser visto como um filme de crises em que esse homem já idoso (Moretti tem hoje 70 anos de idade) encara um mundo que não é mais o mesmo dos tempos áureos do comunismo italiano (outro tema muito caro a Moretti). Ainda assim, está longe de ser um filme de velho ranzinza: o diretor passa por dificuldades, mas ainda encara o mundo querendo vivenciá-lo no equilíbrio entre as modernidades e suas antigas crenças, divertindo-se um pouco.
Tom confessional
Moretti sempre deu um tratamento muito intimista a seus filmes. Daí que seus últimos trabalhos causaram estranhamento pela mão pesada com que ele tratava os dramas familiares (caso de Tre Piani) ou a maneira didática e um tanto paternalista ao falar de episódios históricos (como em Santiago, Itália, documentário sobre como a embaixada italiana em Santiago ajudou muitos militantes a fugir da América Latina com o golpe de Estado liderado por Pinochet no Chile).
Nesses filmes, o diretor se distancia do tom confessional que marcou alguns de seus maiores trunfos (como Caro Diário e Aprile) em que justamente esse direcionamento ao público, como se estivesse fazendo uma confidência, tornou-se uma marca registrada. Felizmente ele retoma esse gesto narrativo no novo longa, maneira de nos fazer afeiçoar pelas inconstâncias deste jovem senhor, ainda muito vigoroso com suas pretensões artísticas.
Com isso, o filme deixa entrever alguns temas que ele solidificou em sua obra: o conflito geracional dentro da própria casa, mas também no seu ambiente de trabalho; e a criação artística, com sua visão moral sobre o cinema em si. Sobre esse último ponto, o filme possui momentos hilários, como a reunião com a equipe da Netflix, a relação com os produtores e investidores coreanos que vagam pelo set de filmagem ou as discussões criativas que tem com a sua equipe.
Mas o mais hilário mesmo é encontro de Giovanni com o jovem cineasta cujo filme está sendo produzido por Paola. O velho diretor visita os bastidores do filme justo no momento em que está se filmando uma cena de gráfica violência. Giovanni não se contém e interrompe a gravação, causado uma enorme discussão sobre e ética (e a estética) moral daquilo que está sendo filmado com tanta animação e alegria, para o desespero e irritação de sua esposa – gerando até mesmo uma ligação telefônica para Martin Scorsese.
Moretti está muito à vontade para fazer dessas e de outras cenas momentos forjados para inserir na trama suas próprias reflexões e modos de pensar e encarar o cinema – e a vida em si, já que para os criadores ambos os conceitos podem até mesmo ser sinônimos. O filme ganha enorme vivacidade com tais peripécias e anedotas, sem o peso do academicismo explicativo e rabugento.
O velho comunista
Outro tema que apaixonadamente aparece no filme é a relação de proximidade e adoração que Moretti/Giovanni possui com o Partido Comunista Italiano. No filme que está fazendo, uma cúpula do Partido ligada à publicação de um jornal partidário recebe a visita de um circo húngaro. Ao mesmo tempo, surgem na televisão notícias sobre a invasão soviética para aplacar a revolução popular que insurgiu na capital húngara a partir do endurecimento do regime soviético no país.
Isso coloca em xeque a posição do Partido que vai precisar reconfigurar sua posição de apoio inconteste ao governo soviético, cada vez mais autoritário e repressor, mesmo sob a bandeira do comunismo, ao mesmo tempo em que o grupo italiano não quer abdicar de suas convicções ideológicas.
Este conflito está no filme dentro do filme, mas tangencia uma questão que é essencial em O Melhor Está por Vir: a necessidade de atualizar os discursos, calibrar a relação entre passado e presentes e aceitar, criticamente, o que virá. Com isso, Moretti faz um filme divertido e espirituoso, em que se amontoam diversos temas complementares.
Numa das cenas mais evocativas do filme – e que ilustra o cartaz da obra –, Moretti abandona a velha motocicleta que ele usava para percorrer as ruas de Roma, vista em diversos de seus filmes anteriores, e a troca por um patinete elétrico. Ao lado do seu produtor francês (Mathieu Amalric), ele faz uma analogia sobre o cinema atual como sendo uma espécie de trapézio pendurado no vazio, sem a menor ideia do que irá acontecer adiante. Isso está posto no título original (cuja tradução seria “O sol do futuro”), mas também de certa forma contemplado no título brasileiro. Afinal, é preciso crer nas realizações do tempo que há de chegar, pois o melhor só pode estar por vir.
O Melhor Está por Vir (Il Sol dell’Avvenire, Itália/França, 2022)
Direção: Nanni Moretti
Roteiro: Nanni Moretti, Francesca Marciano, Federica Pontremoli e Valia Santella
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 07/01/2024)