Música entre amigos*
Diante dos amigos do bairro, um garoto convocou a galera para participar de uma festa no clube Oásis, local de encontro da classe média alta de Belo Horizonte. “A gente não tem dinheiro pra ir nesse clube. Nosso clube é aqui na esquina”, replicou outro garoto.
Quem conta essa história é Lô Borges no documentário Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina, de Ana Rieper, ao explicar como surgiu o nome do lendário time musical que reuniu grandes nomes da música brasileira, ainda muito jovens em meados dos anos 1960. A amizade entre eles frutificou e o Clube da Esquina virou disco duplo gravado no início dos anos 1970, trabalho de enorme influência no campo musical.
O filme é a história dos encontros que culminaram na amizade e no desabrochar profissional dos envolvidos. A diretora usa boas doses de material de arquivo, mas prefere ir direto às fontes para conversar com os hoje senhores que, à época tão jovens, fizeram História na MPB.
Assim ela encontra Lô, Márcio e Marilton Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Ronaldo Bastos, Flávio Venturini, além de muitos outros e, evidentemente, Milton Nascimento, o eterno Bituca, para conversarem e relembrarem os encontros e as histórias por trás da criação de músicas icônicas como “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo”, “Trem Azul”, “Nada Será Como Antes”, “Para Lennon e McCartney”, dentre outras pérolas.
Eles revisitam, inclusive, as esquinas onde se reuniam com os garotos do bairro para se divertir, tocar e criar algumas canções. A própria música que leva o nome do grupo também nasceu nesse ensejo, na brincadeira entre amigos, composta por Márcio Borges. Também vislumbramos a esquina entre as ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, perto de onde moravam.
O lançamento nos cinemas de Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina faz parte do projeto Sessão Vitrine Petrobrás, que leva para as telonas filmes brasileiros da safra independente a preços reduzidos (R$ 20,00/10,00).
Homens-meninos
Alguns desses músicos se conheceram quando tinham 10 ou 12 anos de idade. É o período do desabrochar para a vida adulta, que veio junto com o despertar para a criação artística. Os encontros e conversas na atualidade fazem reviver o tempo em que, ainda jovens, começavam a se encontrar com a música de modo mais profissional, ainda que compondo e criando artesanalmente, a muitas mãos.
A própria dinâmica do filme incorpora um modo muito livre de apresentar essas figuras e revelar seus processos de criação em meio à coletividade. Há, de fato, as entrevistas mais tradicionais, feitas diretamente para a câmera; mas os melhores momentos do filme são quando os amigos se reúnem diante de uma mesa de bar ou na casa da família Borges, ao redor do piano e munidos de violões, para tocar, cantar e rememorar.
Lô Borges, por exemplo, revisita a escadaria do Edifício Levy onde ele vivia com a família e onde Milton Nascimento foi morar depois de sair da cidade interiorana de Três Pontas. Ao descer para comprar pão, Lô ouviu lá do alto a voz de Milton, antes mesmo de vê-lo sentado na escada, e encantou-se com aquela voz que ecoava no prédio. Nascia ali uma amizade para toda vida.
A chegada de outros amigos e parceiros musicais foi se dando de forma natural, a partir das relações que cada um estabelecia, aglutinada também pelos gostos musicais. As influências daquela garotada mineira iam de Beatles e do rock inglês, passava pela percussão afro-brasileira, pela música erudita e chegava até ao jazz improvisado de Miles Davis e John Coltrane. Junta-se a isso a influência da música brasileira e o amor pela cultura local e pela “mineirice” que azeitava o conjunto da obra.
Criação livre
Ana Rieper parece ter se especializado em documentários sobre ritmos e personalidades musicais. Dirigiu o delicioso Vou Rifar Meu Coração (2011), valorizando a música brega, além de Clementina (2019), sobre a sambista Clementina de Jesus. Com Nada Será Como Antes, ela amplia seu leque musical, além de tornar o filme um espelho daquilo que está sendo registrado, absorvendo certa tendência do estilo musical do Clube da Esquina.
O filme tem um quê de quase improviso na maneira de abordar e lidar com as correlações entre cada elo representado pelos integrantes. Logo no início, a câmera do filme acompanha e escuta Lô Borges, enquanto seu irmão Márcio, munido de uma câmera menor, também filma o depoimento do irmão, de modo muito espontâneo e pouco ensaiado.
Algumas entrevistas são feitas com o violão na mão, maneira de demonstrar “ao vivo” aquilo que está sendo explicitado na fala, apesar de que em alguns momento há um excesso de didatismo ao comentar a criação musical com um vocabulário muito técnico.
O uso de material de arquivo é bem-vindo, mas é pouco contextualizado na construção narrativa que o filme faz, por vezes dando a impressão de que as imagens são meramente ilustrativas.
A reunião entre amigos é muito gostosa de ver, mas estranha que Milton Nascimento não apareça junto dos velhos companheiros, dando seu depoimento separadamente – ainda assim valiosíssimo pelo que ele representa para a música brasileira.
Aliás, a comunhão de criação e a amizade entre todos eles parecem ser elos tão fortes que não se vislumbra em nenhum momento algum tipo de desavença ou egos inflados, já que cada um seguiu sua carreira particular depois do primeiro disco e, em alguns casos, já tinham feito coisas até mesmo antes disso.
Em 1978, eles chegaram a gravar o Clube da Esquina 2, disco que segue a mesma proposta e conceito do anterior. Antes de ser uma marca ou apenas uma mera reunião de amigos, trata-se de uma sonoridade única que apenas aquelas pessoas poderiam inventar e legar ao mundo.
Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina (Idem, Brasil, 2023)
Direção: Ana Rieper
Roteiro: Ana Rieper
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 31/03/2024)