Ficção Americana

Escritas pretas*

Escritor de meia idade, um tanto solitário, com alguns problemas familiares e certo bloqueio criativo, Thelonious ‘Monk’ Ellison (o sempre ótimo Jeffrey Wright) batalha para conseguir seu lugar ao sol no campo da literatura contemporânea. Como homem negro, seus livros são sempre catalogados como “literatura afro-americana”, colocados em uma caixinha específica e geralmente apartado do que seria a literatura de seu país, sem subdivisões.

Ao mesmo tempo, ele vê outros autores negros fazendo sucesso com livros que reforçam certos estereótipos raciais, mas que são lidos como representação crua e realista do povo negro do seu país. Tais obras caem nas graças do público e, principalmente, dos editores e agentes brancos que querem, de alguma forma, lucrar com as noções de representatividade e reparação racial.

Essas e muitas outras questões são temas que se embrincam em Ficção Americana, dirigido por Cord Jefferson. O filme já está disponível no catálogo do Prime Video, serviço de streaming da Amazon. E recebeu no domingo passado o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, sendo uma obra que transpõe o livro “Erasure” (que pode ser traduzido como “Apagamento”), de Percival Everett.

Jefferson estreia na direção de um longa-metragem depois de uma passagem mais substancial pela TV, principalmente como roteirista. Aqui, ele já encontra um tema espinhoso pela frente. Porém, o maior mérito do filme é usar a sátira para tensionar e contrapor os percalços que Thelonious vai enfrentar a seguir.

Mas o personagem decide também “revidar”. Em um acesso de impulsividade (e de criatividade também), ele acaba escrevendo, sob um pseudônimo, um livro que contém todos os estereótipos raciais e os lugares-comuns com que pessoas negras são retratadas na literatura. Faz isso quase como uma brincadeira. Mas, quando seu editor lê o material, fica encantado por aquilo. Resultado: o livro é publicado e se torna uma sucesso imediato de vendas.

Potencial desperdiçado

Nesse emaranhado de debates raciais, o filme ainda investe nos conflitos familiares que Thelonious enfrenta. Sua mãe (Leslie Uggams) está em fase inicial de Alzheimer; seu irmão (o também ótimo Sterling K. Brown) saiu de um casamento de fachada para assumir sua homossexualidade; todos ainda se recuperam da morte inesperada de um ente querido da família; e ele ainda encontra um novo amor na vizinha de sua mãe, a doce Coraline (Erika Alexander).

Os personagens secundários de Ficção Americana são realmente muito bons e interessantes. Mas também fazem com que o filme precise investir na construção de arcos narrativos que envolvem a relação de Thelonious com todos eles. E isso tira de foco, em grande parte, as discussões que parecem mais latentes na trama acerca da “literatura negra” e do que há de oportunismo ou validade nisso tudo, dentre muitas questões interpostas.

É certo que as experiências pessoais, os dramas e traumas da infância e adolescência, a busca pela independência profissional, enfim, os caminhos do indivíduo, tudo isso transparece de alguma forma na literatura que ele faz (em qualquer forma de arte, no final das contas). Mas é um esforço narrativo muito grande alinhar tudo isso em um filme de menos de 2 horas.

Certamente pesa aqui a passagem do diretor e também roteirista. Talvez Ficção Americana funcionasse melhor como uma série de TV, já que o filme propõe muitos pontos de debate, mas não necessariamente os desenvolva a contento.

Thelonious, por exemplo, vai ter lidar com a jovem escritora Sintara Golden (Issa Rae), uma dessas novas vozes da literatura negra, acrescida da identidade feminina, que faz sucesso com um tipo de produção para grande público. Por ironia do destino, eles dois e mais outras pessoas brancas são convidados a fazer parte de um júri de um prêmio literário. E o maior concorrente acaba sendo o livro que Thelonious escreveu anonimamente. E que sua namorada está lendo avidamente no momento.

São, portanto, muitos caminhos cruzados dentro do inferno astral que o personagem vive. Em poucos momentos, de fato, o filme consegue sair da superfície, como na cena em que Thelonious questiona Sintara pelo livro que ela escreveu, em detrimento ao livro dele do qual ela não gostou. Esse é um dos melhores diálogos do filme porque, aí sim, os prós e contras são colocados de modo mais substancial por eles. Mas é um tipo de discussão que não se repete na trama.

Nesse percurso narrativo, Ficção Americana é sátira, mas também drama familiar, debate sócio-racial, melodrama e ainda encontra espaço, para nos momentos finais, investir em uma abordagem metalinguística que coloca um filme dentro do filme, embaralhando ainda mais os registros daquilo que é ficção ou vida real. Uma salada russa de pontas soltas e questões que merecem muitos mais debate social.

Ficção Americana (American Fiction, EUA, 2023)
Direção: Cord Jefferson
Roteiro: Cord Jefferson e Percival Everett

*Publicado no jornal A Tarde (edição de 17/03/2024)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos