Duras de matar*
Uma fisiculturista se apaixona por uma gerente de academia em uma decadente cidade norte-americana dos anos 1980. Love Lies Bleeding – O Amor Sangra, da cineasta britânica Rose Glass, já em cartaz nos cinemas, é um filme abrasivo sobre a possibilidade do amor diante das agruras da vida – e da família. O relacionamento é ameaçado menos pelo preconceito vigente, mas sobretudo pela onda de violência que parece rondar aquelas personagens inevitavelmente.
O primeiro longa-metragem da cineasta britânica Rose Glass, Saint Maud, já trazia uma protagonista envolta a um trauma sangrento e violento – e que discutia o fundamentalismo religioso com nuances psicológicas. Agora, no novo filme, saem de cena as neuroses mentais e encara-se o submundo dos negócios escusos das quais as personagens querem se livrar a todo custo, mesmo que tendo de sujar as mãos no meio do processo.
Jackie (Kate O’Brian) está de passagem a caminho de Las Vegas onde deve participar de um concurso de fisiculturismo, também fugindo de uma realidade familiar que não lhe parece mais suportável. Encontra apoio e afeto em Lou (Kristen Stewart), que gerencia a academia da família onde Jackie passa a treinar. O envolvimento das duas é instantâneo.
Lou tem uma irmã mais velha (interpretada por Jena Malone) que vive um relacionamento abusivo com o marido (Dave Franco), enquanto o pai das duas (Ed Harris, com um visual medonho) administra um clube de tiro que serve de fachada para tráfico de armas e outras atividades suspeitas. Ele é uma espécie de mafioso local, controlador, inescrupuloso e com influência na polícia.
É uma família barra pesada com a qual Lou busca não se meter, apesar do carinho que tem pela irmã. Ela fica preocupada quando descobre que Jackie conseguiu um emprego de garçonete justamente no clube do seu pai. É aí que as relações começam a se misturar, os segredos passam a vir à tona e o estopim da violência gera uma série de reviravoltas que colocam a vida delas em perigo.
Clima brutal
O Amor Sangra não esconde a brutalidade e a aspereza que reinam naquele ambiente. Glass forja um clima sombrio do underground interiorano norte-americano, fazendo clara referência aos filmes policiais oitentistas e ao cinema exploitation, em que sexo e violência andavam juntos.
Nessa reinvenção de um filme classe B, a diretora faz encontrar essas duas almas solitárias em busca de comunhão, ainda que sejam também parte da engrenagem de violência que o filme costura a partir de uma situação catalizadora específica – e também violenta. O filme não pretende cristalizar o comportamento das personagens nem apostar em maniqueísmos; por outro lado, não julga suas atitudes diante do círculo nocivo que se forma ao seu redor.
Nesse sentido, toda a sujeira e podridão que vislumbramos na composição visual do filme serve para apontar um ambiente que beira a degradação (o vaso sanitário sempre entupido da academia, o pai que cria vermes e muito sangue espirrado na tela, especialmente na parte final), mas que também aproxima aquelas duas mulheres.
O filme tem uma vibração muito positiva que, ao confrontar temas e situações graves, é capaz de tornar a trama muito envolvente simplesmente a partir das tomadas de atitudes das personagens, nem sempre as mais acertadas. Quando a coisa desanda e se instaura na trama a bola de neve de morte e corpos desfigurados, é impossível tirar o olho da tela. Lembra em muito o cinema vigoroso de uma Kathryn Bigelow, para ficar no exemplo de uma mulher que filma ação e adrenalina com tensionamento exemplar (vide filmes como Caçadores de Emoção, Quando Chega a Escuridão e Guerra ao Terror).
Corpos em ebulição
Incrível também como a Rose Glass filma o vigor do corpo feminino. Além de evitar cair no fetichismo barato, mesmo quando mostra sexo e o tesão das duas protagonistas, ela consegue encontrar o ponto de equilíbrio entre a exposição e a adoração genuína.
Nada soa gratuito no filme, ao mesmo tempo em que nada é pintado com moralismos banais. É uma nuance muito perspicaz do olhar de uma mulher (junto com uma colaboradora roteirista, a polonesa Weronika Tofilska, uma das diretoras de Bebê Rena, atual série de sucesso da Netflix) sobre corpos e ebulição sexual femininos, filmado com desejo e senso de perigo latentes.
A própria ideia do corpo escultural que Jackie tem construído a fim de vencer o concurso é um elemento usado para reforçar a gradual explosão física que se dá pela pressão psicológica sofrida diante das desgraças da vida. Seu corpo se transforma à medida em que se demanda dela não apenas músculos, mas também atitudes. A personagem de Stewart também precisa decidir de que lado está – se da família ou de seu novo amor.
Mas Lou é, também, a responsável pela descida aos infernos de Jackie por envolvê-la em um novelo de ferocidade e degradação. Antes de conhecer Lou, ela nunca tinha tomado anabolizantes, por exemplo, mantendo o corpo musculoso apenas com sua rotina de treinos pesados. É como se o novo amor trouxesse também uma dose de perigo desvirtuante, mas irresistível.
Com isso, Love Lies Bleeding – O Amor Sangra, a despeito de ser apenas o segundo longa-metragem da jovem diretora, serve para revelar o pulso firme e o olhar rascante de Glass. Um olhar que também desafia certa tendência realista desse tipo de filme ao abrir espaço para uma camada visualmente lúdica, que ganha materialidade no clímax do filme. No conjunto, são gestos narrativos que confrontam muitas convenções – sociais, sexuais e também do gênero cinematográfico –, revelando camadas das mais subversivas.
Love Lies Bleeding – O Amor Sangra (Love Lies Bleeding, EUA/Reino Unido, 2024)
Direção: Rose Glass
Roteiro: Rose Glass e Weronika Tofilska
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 04/05/2024)