Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos / Entrevista com Daniela Broitman

Artista de muitos amores*

“As pessoas cantam Caymmi e não sabem”, reforçou a cineasta Daniela Broitman. Essa fala também está no documentário que ela acabou de lançar nos cinemas, Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos. No filme, é Gilberto Gil quem afirma isso, relembrando os versos “Quem não gosta de samba / Bom sujeito não é”, de autoria de Caymmi.

Essas e outras rememorações estão presentes no filme que já havia sido exibido em Salvador em uma edição anterior do Panorama Internacional Coisa de Cinema, mas agora chega às salas comerciais de todo o Brasil. Broitman esteve presente na capital baiana para acompanhar o lançamento e conversou com A Tarde sobre o seu processo de realização.

“Caymmi sempre esteve presente na minha vida porque a minha avó cantava Caymmi. Desde criança eu o ouvia até porque fazia parte do imaginário brasileiro”, afirmou a cineasta. Broitman contou também que recebeu o projeto do filme de presente, já que foi uma antiga aluna sua que quis fazer o documentário e a convidou para produzir.

Na turbulência do mar da vida, essa estudante teve que abandonar o projeto e Broitman acabou assumindo o filme, que ganhou um novo formato a partir das pesquisas que ela foi fazendo. “Eu carreguei esse projeto com muito cuidado, muita atenção, me dediquei por cinco anos de corpo e alma a esse filme. Fiquei totalmente maravilhada quando eu mergulhei nesse universo, descobrindo cada vez mais coisas sobre Caymmi”, revelou a diretora que reside no Rio de Janeiro, mas é nascida em São Paulo.

O resultado é um filme apurado que busca desvendar o artista de talento e também o homem amoroso que levou a cultura da Bahia para o restante do Brasil e depois para o mundo.

O encontro com Carmem Miranda e sua performance de O que É que a Baiana Tem?, eternizada em disco e no filme Banana da Terra; ou então na adaptação soviética de Capitães da Areia, de Jorge Amado, tão popular no bloco comunista, que traz a versão em russo de Suíte do Pescador (“Minha jangada vai sair por mar / Vou trabalhar / Meu bem-querer”). Essas e muitas histórias marcam a influência de Caymmi na música e cultura brasileiras.

Caymmi por ele mesmo

Há muitos outros filmes sobre Dorival Caymmi feitos nos últimos anos, além de muitos registros do passado. Mas Broitman conta que quis fazer do seu filme uma experiência de cinema, com um tempo e um arco dramático muito próprio. Além disso, é o primeiro filme sobre o artista dirigido por uma mulher, o que já altera o olhar lançado sobre seu tema de interesse.

Broitman, ao invés de reunir um time de peso da MPB para chancelar a importância e o talento de Caymmi, prefere fazer um registro mais íntimo, destacando as falas de quem conviveu com ele, em especial dos filhos, também músicos, Marcelo, Dori e Nana. Além deles, Caetano Veloso e Gilberto Gil – que chegou a ser casado na Nana nos anos 1960 – também dão entrevistas.

Mas o grande achado de Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos é a gravação de uma conversa de Caymmi travada na casa de Lígia e Marcelo Machado, amigos da família Caymmi. Além de serem imagens inéditas, elas revelam certa intimidade e uma liberdade de fala, já que não se tratava de uma entrevista formal. “Para mim, o importante era não só falar do artista, do músico, compositor, cantor, mas realmente falar do homem, mostrar todas essas outras facetas do indivíduo”, pontuou a diretora.

Essas imagens de arquivo, feitas para um possível programa ou filme, nunca foram usadas e estavam guardadas no arquivo da produtora – que hoje nem sequer existe mais – responsável pelas filmagens à época. Broitman contou que teve de recuperar a qualidade sonora e visual dessas imagens.

Elas acabam sendo essenciais para o sucesso do filme porque, além do ineditismo, revelam um Caymmi que fala por si só, com muita naturalidade, entre amigos. O artista sempre foi um homem falador, repleto de histórias e “causos” que ele adorava contar – tinham também uma memória invejável, lembrando detalhes desses contos –, como se pode ver em outros filmes e entrevistas que ele concedeu.

Mas aqui há um ar prosaico que torna ainda mais graciosas as falas e percepções de Caymmi sobre si mesmo e sobre seu ofício. “Se a gente pensar bem, a maneira dele falar era como ele escrevia as canções. Ele retratava os ‘causos’, as pessoas, as histórias na música dele com um vocabulário, um jeito muito próprio”, observou Broitman.

Afetos

O traço da afetividade também é escolhido como um ponto fundamental do filme – está lá no subtítulo da obra. “Ele era um superartista muito sensível e com muitas aptidões. Nesse sentido, eram muitos afetos envolvidos porque ele gostava de muitas coisas”, afirmou Broitman, destacando a atuação de Caymmi também como jornalista e colunista, no início da carreira; como pintor e, de alguma forma, como designer, que gostava de desenhar logomarcas; chegou também a participar como ator em alguns filmes.

“E tem o afeto das muitas pessoas que gostavam dele”, continuou. “Ele era querido pela imprensa, muito querido pelas pessoas simples do seu dia a dia, como o jardineiro e a cozinheira que está no filme. E até pessoas do mais alto escalão, desde artistas famosos, como Amália Rodrigues e Carmen Miranda, até Assis Chateaubriand, dono de um conglomerado de mídia”.

O artista e o homem se confundem no olhar que Broitman lança sobre Caymmi. As imagens ilustrativas feitas na Bahia, por mais bonitas que sejam, não deixam de ter um aspecto um tanto genérico, ainda que componham o universo cultural da obra caymmiana: os pescadores trabalhando no mar, as ruas do Pelourinho, a praia de Itapuã, as festas nos terreiros de Candomblé. Mas o mais importante aqui é a paisagem humana que o filme revela pelo olhar de Caymmi e suas muitas facetas.

Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos (Brasil, 2019)
Direção: Daniela Broitman
Roteiro: Daniela Broitman

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 28/04/2024)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos