Especialmente em seus últimos filmes, talvez desde meados dos anos 2000, o cinema de Clint Eastwood tem se debruçado mais especificamente sobre um tema basilar: a moral heroica do homem americano (e por, poucas, vezes da mulher também). Republicano assumido, Eastwood é dos cineastas americanos mais patriotas a elogiar – em alguns casos, discutir e colocar em questão – os valores cívicos do povo americano, seja através de nomes ilustres ou daqueles mais anônimos, pouco importa. Por vezes, ele busca chacoalhar tais preceitos, a partir dos labirintos morais em que esses personagens se encontram.
Raros são os cineastas que conseguiram manter-se fieis a uma linha de pensamento narrativo tão coesa, apesar da inconstância da qualidade de seus filmes. A Mula seria uma clara continuidade de um raciocínio complexo sobre a “americanidade”, a se somar a outros retratos compostos pelo diretor nos últimos anos (15h17: Trem para Paris, Sniper Americano, Sully e, sobretudo, Gran Torino). São, de modo geral, retratos de homens confrontados com seus destinos que precisam responder a uma demanda da vida, precisam fazer escolhas que se chocam ou, de alguma forma, estremecem os pilares conservadores que, se não são defendidos por eles próprios, ao menos passam pelos valores alimentados pela cultura norte-americana. Certamente são filmes muito diversos e que lidam com uma série de outras questões, mas é possível desenhar tais traços em comum.
Esse é também o caso real do octogenário Earl Stone, cuja peculiar história foi publicada em artigo do New York Times que dá conta da transformação desse simpático velhinho que cultiva flores de forma amadora em transportador de drogas para um cartel mexicano. Seguindo uma estrutura a mais clássica possível, o filme parte da lucidez de apresentar esse homem, seu cotidiano, sua relação de distanciamento e desacerto com a família, sua relação de proximidade com os amigos que fez – com a vida que construiu para si, longe das normas padrão de uma família tradicional – antes de colocar em evidência o desvio de rota que ele vai tomar já no fim da vida.
Essa história é incrível e serve como uma luva aos propósitos do cineasta em revisitar o mito do bom e nobre americano, ainda que aqui ele seja confrontado com seu lado mais contraditório, mesmo que dentro de um personagem peculiar. Earl aceita o trabalho escuso somente porque está falido, o Estado está prestes a tomar a sua casa e ele não tem outros meios de ganhar a vida, fora a parca aposentadoria que recebe. O homem de bom coração, o vovô fofinho amante dos lírios, tem lá seus motivos para aceitar o serviço, demora um tanto para entender onde está se metendo, mas não é nenhum pouco inocente. A própria ideia de ser um pai distante e marido relapso faz ele fugir um tanto do papel do provedor exemplar, do pai de família habitual. Por outro lado, ele conserva os preceitos arraigados do americano médio: quando para na estrada para ajudar uma família negra, ele não deixa de se vangloriar de estar ajudando aquelas pessoa, usando um termo preconceituoso para tratar os pretos nos Estados Unidos. Earl é a América profunda, travestida de boas intenções.
Existe uma pitada de ingenuidade com que Eastwood trata esse personagem, dotando o filme de certo humor e leveza, mas não deixa também de transmitir sinceridade na maneira de lidar com suas limitações morais. De certo modo, o filme contrabalanceia, a todo instante, as ambiguidades desse personagem, e esse tratamento equilibrado é um dos acertos do longa, mesmo quando, lá no final, o filme precisa amansar as coisas e desenvolver certa redenção possível sobre as relações que esse homem construiu, seja com a família (há uma última cena tocante com Diane Wiest, que vive sua ex-mulher) ou até mesmo com o agente do departamento de combate às drogas, Colin Bates (Bradley Cooper), com quem ele, cínica e anonimamente, mantém certas conversas aprazíveis.
O cineasta já falou de aposentadoria antes, mas parece bem firme e lúcido aqui, acumulando as funções de diretor e protagonista. É, acima de tudo, um ótimo trabalho de atuação, colocando em xeque a figura do velho republicano, ao mesmo tempo frágil e cheio de convicções e decisões, proativo e senhor de suas ações. O personagem não titubeia nem parece se questionar um único minuto. Sendo o próprio Eastwood um apoiador do partido republicano, é curioso notar as nuances que ele consegue imprimir na trajetória torta desse homem, refém das circunstâncias, mas desnudado pela força de suas atitudes. A Mula não deixa de ser também um elogio à atividade, ao vigor. Tal como Earl, Eastwood segue fazendo cinema como quem precisa disso para sobreviver. Os moldes são antigos e as nuances vêm com o tempo.
A Mula (The Mule, EUA, 2018)
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: Sam Dolnick e Nick Schenk