Mostra Tiradentes: Um Filme de Verão

Talvez seja cedo para dizer, mas Um Filme de Verão poderia muito bem ser um divisor de águas no cinema brasileiro recente quando o assunto são filmes sobre a juventude. O retrato do jovem, da efusão jovial, do cotidiano e suas transformações, sempre foram temas no mundo das artes. Na literatura e no cinema, o filme ou romance de formação tornou-se um subgênero reconhecido, suas marcas já facilmente decodificadas pelo público. Os dramas e conflitos da população jovem periférica também têm sido pauta de muitas obras recentes. Mas a operação que Um Filme de Verão se propõe a fazer sugere ao mesmo tempo uma ruptura e uma aproximação com esse tipo de história, abrindo-se em si mesma para um campo de possibilidades que não se esgotam nos temas e vivências que não precisam ser reinventadas pelo filme porque elas são muito claras e onipresentes na vida do jovem.

Já na cena inicial, umas das personagens mais marcantes do filme encadeia, em voz off, uma série de possibilidades a que esse tipo de trama poderia apontar (primeiro amor, descoberta sexual, conflito com os pais, gravidez, solidão, amizades, educação, trabalho – mas sem o didatismo que eu utilizo aqui), sendo muitas delas escolhas que o filme poderia tomar. Algumas estão realmente lá, mas o que a diretora Jô Serfaty faz é buscar outros modos, vivazes e nunca controlados, de passar por esses lugares e percepções.

Antes de ser carta de princípios, o filme parece expurgar tudo isso, todas os lugares comuns e clichês do filme de adolescente para jogá-los fora, descartá-los. Ora, o próprio filme compacta as primeiras cenas que acontecem na escola como uma caixa de rápidas e recentes recordações dos personagens nos últimos dias de aula antes de apresentar o letreiro com o nome do longa. Um Filme de Verão é um filme de férias. O ambiente escolar sempre foi muito atrativo para esse tipo de narrativa, mas Serfaty faz questão de olhar para outro lado, outra geografia tão rica quanto – a da vizinhança –, inclusive para tirar certa ideia de uma inépcia da juventude quando fora da escola – maiores são os poderes dos jovens.

Isso já seria um deslocamento pouco usual para esse tipo de história, mas o filme aprofunda essa experiência ao estilhaçar a linha narrativa, mas não a ponto de fragmentá-la e perdê-la de vista. Ao contrário, o filme nos faz experimentar um modo distinto de intimidade com aqueles jovens, sem se apegar a regras normatizadas de roteiro e dramas intercalados, ainda que eles existam, há muitos deles lá. É como uma profusão de acontecimentos que se sucedem – que se acumulam – uns aos outros, dando conta da rotina de um grupo de amigos que moram na comunidade de Rio das Pedras, periferia do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa, perigosa e cruel para o jovem favelado, mas dotado de desejos, sonhos, aspirações, frustrações e casualidades.

Grande parte desse despojamento narrativo se revela frente ao super trabalho de montagem assinado pela sempre competente Cristina Amaral – não à toa, vencedora do prêmio Helena Ignez, destinado a um destaque feminino dentro da Mostra Tiradentes. Mais do que representativo da figura de Cristina para a história do cinema brasileiro, há nesse trabalho um frescor enorme e uma habilidade de passear entre os muitos núcleos sem que se perca a condução das trajetórias – que, por vezes, funcionam como um núcleo só, um mesmo conjunto familiar de dramas que se interconectam, primeiro pela vivência no espaço compartilhado da comunidade, depois pelas nuances sempre reconhecíveis que permeiam o universo juvenil e ainda pela aproximação que os personagens já mantêm entre si.

Karol, por exemplo, precisa lidar não mais com as ilusões amorosas, mas com o fato de Junior, seu namorado desde que começa o filme, ter de se mudar de cidade acompanhando a mãe. Caio vive uma rotina cercada pelo umbandismo, mas vai questionar sua própria fé num movimento incomum. Como a música é sempre uma presença na vida dos jovens, o rock logo aparece em cena, até mesmo no arremedo de uma banda em que eles ensaiam, e as referências vão de Nirvana – quem disse que na favela carioca só se toca funk? – aos grupos de pop japonês e coreano que geram um dos momentos mais hilários do filme (Karol se fazendo de astro-nipônica num clipe maluco cantando o hit PONPONPON).

Tais gestos contidos no roteiro do filme apontam para rupturas que tecem um cotidiano nunca fora do normal, não há nada de excepcional ali; mas é dessa vida comum que o filme se nutre para dar forma e caminhos poucas vezes vistos no cinema brasileiro recente, talvez para captá-los em outra energia, mas não menos pulsantes e repletos de possibilidades. Serfaty propõe um olhar carinhoso e ao mesmo tempo abrangente, descolonizado e desamarrado dos lugares em que esses personagens são geralmente postos, ou de como são vistos. Um filme de Verão passa como um sentimento de libertação e descobre ainda esses personagens em suspensão diante da vida que corre e que ainda lhes abrirá caminhos novos e, talvez, impensáveis.

Um Filme de Verão (Brasil, 2018)
Direção: Jo Serfaty
Roteiro: Jo Serfaty e Isaac Pipano. Colaboração: Ricardo Fogliato, Karollayne Rabech, Junior Souza, Caio Neves e Ronaldo Lessa

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