As Verdades

Muitas versões de uma só história*

Em 1950, Akira Kurosawa ficou conhecido no Ocidente através de um de seus maiores sucessos, Rashômon. A trama, baseada em dois dos contos do escritor Ryûnosuke Akutagawa, publicados no início do século passado, gira em torno de um crime contado a partir das versões de três pessoas envolvidas no caso, cada qual omitindo os segredos que melhor lhes convinham. Desde então, esse tipo de narrativa fundada no ponto de vista dos personagens tornou-se comum na literatura e no cinema.

As Verdades, novo longa-metragem do cineasta brasiliense José Eduardo Belmonte, estreia hoje nos cinemas e segue à risca a mesma estrutura narrativa, ambientado agora no interior da Bahia. Numa cidadezinha litorânea – as gravações aconteceram em Itacaré e Maraú –, onde o tempo parece pausado, o delegado Josué (vivido por Lázaro Ramos) precisa investigar a tentativa de assassinato contra Valmir (Zécarlos Machado), cujo corpo é encontrado gravemente ferido em um terreno descampado.

Valmir era um homem de negócios (alguns não necessariamente lícitos) e candidato a prefeito da pequena cidade. Possuía um relacionamento com Francisca (Bianca Bin), com quem pretendia se casar, à revelia da mãe dela (Drica Moraes), totalmente contrária ao caso dos dois, e também de Cícero (Thomás Aquino), rapaz que não esconde o seu interesse em Francisca.

As teias de relações e envolvimentos começam a se tecer a partir daí e das versões que vão chegando ao conhecimento de Josué. Ao mesmo tempo, o próprio delegado precisa buscar certa objetividade no caso porque ele também já teve um envolvimento amoroso com Francisca no passado, o que acaba evoluindo para uma dilema emocional à medida em que a história vai se tornando mais violenta – descobre-se que Francisca foi violentada sexualmente na mesma emboscada que vitimou Valmir.

Melancolia policial

Apesar de focar na resolução do crime, As Verdades acaba refletindo ainda sobre as escolhas que seus personagens tiveram que fazer no contexto de vida interiorana, com poucas perspectivas de futuro, em meio a um emaranhado de violências que é preciso enfrentar no caminho – especialmente as mulheres. Há uma dimensão de melancolia pessoal que também perpassa pela paisagem quase que desértica e de poucas oportunidades do local.

A TARDE participou da coletiva de imprensa virtual do filme em que Belmonte falou, dentre outras coisas, da escolha das locações: “A princípio, essa história se passava no sertão, mas eu tive uma intuição de que era interessante conhecer essa região que eu achava muito cinematográfica. Havia um subtexto sobre essa cidade que era o fato dela ficar muito cheia em determinada época do ano e depois se esvaziava, que é um pouco o que acontece com muitas cidades litorâneas no Brasil”.

Lázaro Ramos também participou da conversa e destacou a importância da ambiência interiorana para o longa: “Um dos motivos que me trouxeram para esse projeto foi a possibilidade de voltar à Bahia, para uma outra região da minha terra e para fazer uma história policial. Uma das coisas que eu acho especiais no filme é justamente essa paisagem para acentuar a atmosfera que, talvez, se fosse em outro projeto, seria ambientando num grande centro urbano”.

O ator celebrou também a possibilidade de se fazer um filme policial na Bahia, alargando as possibilidades narrativas dentro do cinema brasileiro, ele que lançou recentemente, como diretor, o longa Medida Provisória, filme de tons distópicos a fim de discutir a política racial no Brasil. “Cada vez eu tenho mais convicção que a gente precisa oferecer vários tipos de gêneros cinematográfico feitos em nosso país, falados em português”, complementou o ator e diretor.

Violências misóginas

Em uma cena pontual do filme – que se repete em duas visões distintas –, quando Josué está saindo da delegacia, ele presencia um casal brigando na rua, em que o marido está prestes a agredir fisicamente a esposa. É um momento rápido, que pode passar despercebido, mas é outra ferida importante exposta pelo filme: a violência contra a mulher. À medida em que a trama se desenvolve e “as verdades” vão vindo à tona, fica mais evidente que há um ciclo vicioso de agressões e coações que estão no cerne da trama.

Uma das personagens que conseguem observar isso bem é a policial Sâmia, interpretada por Edvana Carvalho. “Quando eu entrei no filme e me encontrei com Belmonte, a gente entendeu que era necessário falar de sororidade, e esse filme tem muito disso. A minha personagem se compadece com o sofrimento das outras mulheres”, observa a atriz.

Sâmia ajuda Josué a investigar o caso – espera também o momento de ocupar a cadeira de delegada, mas a oportunidade nunca lhe chegou – e é quem melhor percebe, com frieza e pertinência, as nuances do caso. “A gente é criada numa sociedade patriarcal, com essa masculinidade tóxica. Os homens aprontam, mas eles mesmos se perdoam ou têm algum tipo de poder, seja financeiro ou político, e conseguem sempre se sair sem pagar nada. Então a Sâmia tem esse papel importante de se unir com as mulheres”, pontuou Edvana.

As Verdades parte, portanto, de uma estrutura narrativa engenhosa não apenas para desvendar o crime, mas para desvelar certas mazelas sociais e comportamentos viciosos. É certo que o filme se beneficia das versões de cada um para superlativizar os fatos, sem muita sutileza, mas isso não torna as histórias menos plausíveis. Os pontos de vista sobre os acontecimentos são múltiplos, mas a história de violência e misoginia, que insiste em se repetir, faz parte de uma mesma narrativa social.

As Verdades (Brasil, 2022)
Direção: José Eduardo Belmonte
Roteiro: Pedro Furtado

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 30/06/2022)

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