Crônica de busca e abandono*
Não parecem muito originais as tramas sobre jovens e crianças que desaparecem misteriosamente e colocam seus pais em ritmo de busca desenfreada. Lost Girls – Os Crimes de Long Island segue a mesma estrutura, mas a trama dirigida por Liz Garbus guarda suas novidades, em especial relacionadas ao descaso sofrido por garotas envolvidas em negócios vistos como “imorais”.
Ainda mais sendo esta uma história real, encenada dez anos depois do caso vir à tona, Lost Girls é um retrato duro sobre o abandono e sobre aqueles que não conseguimos manter sob nossa proteção. A trama começa quando Mari Gilbert (Amy Ryan) marca uma jantar em família com sua filha adolescente, Shannan, que já mora fora de casa. Mas a garota não aparece.
As coisas se complicam ainda mais quando o sumiço da garota leva à descoberta dos restos mortais de outras quatro jovens nos mesmos arredores onde a filha de Mari foi vista pela última vez. O caso ganha proporções maiores e o comando passa para o chefe de polícia Richard Dormer (Gabriel Byrne), ainda que ele e todo o seu time de investigadores pareçam pouco impelidos em descobrir a verdade com rapidez e presteza.
Implicitamente, o filme sugere que isso se deve ao fato das meninas assassinadas serem todas identificadas como garotas de programa que comercializavam seus serviços através de anúncios na internet. O envolvimento de Shannan no mesmo tipo de esquema coloca em xeque a relação da garota com a família.
Um primeiro destaque do filme recai sobre a determinação e a ousadia com que Mari enfrenta a situação. Ela não se contenta com a vagarosidade da polícia e parte para uma investigação paralela arriscada. Como mãe incansável e durona, de personalidade forte, ela não está disposta a desistir, até porque ainda alimenta esperanças de que a filha possa estar viva.
Além de toda a pressão em relação ao desaparecimento, Mari precisa lidar com as outras duas filhas mais novas, já adolescentes, que se apegam ao ímpeto justiceiro da mãe, mas possuem também suas fragilidades. Não demora muito para que os dramas familiares venham à tona, inclusive as mentiras e erros do passado, pesando aí as dificuldades que Mari enfrentou na criação de Shannan.
Sororidade
Apesar do temperamento arredio, Mari aos poucos vai se unindo às mães e irmãs das demais jovens assassinadas – ela e as filhas são convidadas para uma espécie de vigília como forma de chamar a atenção da mídia para o caso, que parece cada vez mais interligado a uma mesma rede de assassinatos de garotas de programa na região de Long Island, próximo a um condomínio de luxo.
É uma realidade comum que diante do desaparecimento dos filhos, são geralmente as mães que seguem firmes na pressão das autoridades locais para a resolução dos casos. Ficam na linha de frente e não descansam antes de encontrarem uma resposta ou culpado. Em Lost Girls as figuras masculinas ligadas às vítimas são realmente inexistentes; Mari já era mãe solteira há tempos, e nas demais famílias somente as mulheres aparecem e se engajam para tentar iluminar os casos, inclusive nos embates com a polícia.
O filme explora bastante o tour de força entre Mari e Dormer. Ela o confronta sem papas na língua e chega inclusive a oferecer pistas e direcionamentos que a polícia não conseguiu seguir – por negligência ou inoperância mesmo. Existe um tom de denúncia nesse sentido também, já que as forças da lei e da ordem deveriam estar mais empenhadas na resolução dos crimes.
Certamente trata-se de um olhar que parece dever muito à condução da diretora Liz Garbus, inclusive na maneira como coloca em questão a forma como as mulheres que atuam no ramo da prostituição são tratadas como párias na sociedade, desprezadas e duramente julgadas como merecedoras de uma violência que elas mesmas buscaram para si.
Sendo mais conhecida como diretora de documentários (fez o ótimo What Happened, Miss Simone?, sobre a cantora norte-americana Nina Simone, também para a Netflix), Garbus faz um bom trabalho ao trazer um olhar feminino para este tipo de situação e narrativa dentro do gênero policial, embora o filme não consiga fugir de certos altos e baixos.
Por mais que seja crível a ineficiência da policial, o longa possui uma condução por vezes apressada, não conseguindo dar conta de discutir e explicar alguns movimentos ou omissões da polícia (por que eles não investigaram alguns suspeitos com mais afinco?) ou até mesmo de Mari (o fato dela ter acesso muito fácil a pormenores da rotina do médico Petter Hackett).
Mas vale destacar aqui o ótimo desempenho de Amy Ryan como essa mãe coragem aguerrida, enfrentando a tudo e a todos, inclusive seus próprios fantasmas. Um belo contraponto a ela é sua filha mais nova, Sherre (a também ótima Thomasin McKenzie, vista recentemente em Jojo Rabbit), que sente a falta de atenção da mãe diante de toda a energia despendida na busca por sua filha desaparecida. É aí que o filme revela que antes de buscar os desaparecidos, é preciso acolher e nunca abandonar os que já estão por perto.
Lost Girls – Os Crimes de Long Island (Lost Girls, EUA, 2020)
Direção Liz Garbus
Roteiro: Michael Werwie
*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 23/03/2020)