Nóis por Nóis

Juventudes periféricas*

O cineasta Aly Muritiba já havia se aproximado do universo juvenil no seu filme anterior, Ferrugem (2018). Mas se ali o cineasta discutia o bullying virtual dentro de uma realidade de classe média, em seu mais novo filme é a periferia de Curitiba que aparece em primeiro plano. Nóis por Nóis lança um olhar para as vivências e anseios de jovens que lidam com um cotidiano complexo de altos e baixos.

Mas para falar desses sujeitos neste espaço, o cineasta contou com a codireção de Jandir Santin, educador que já atuava com o audiovisual na comunidade de Vila Sabará – a maior ocupação urbana da cidade de Curitiba. Na verdade, foi Santin quem propôs a Muritiba (cineasta nascido na Bahia, mas radicado no Paraná) a realização de um projeto que colocasse em evidência as vidas e dramas de jovens daquela periferia, o que rendeu uma série de cinco capítulos exibida na TV, antes de chegar a esta versão longa-metragem lançada agora nos cinemas.

A parceria rendeu um filme que alia o melhor da tensão social que Muritiba é capaz de criar – ele que possui um trabalho anterior como agente carcerário e dirigiu a chamada Trilogia do Cárcere – com as discussões sobre os dramas reais vividos na periferia que o Santin já observava em seu cotidiano. Ainda assim, é possível questionar um filme que se chama “Nóis por Nóis”, mas que ainda é dirigido e roteirizado por sujeitos provenientes de uma outra realidade social.

Certamente o título do filme não aponta para uma representação feita diretamente pelas pessoas retratadas no filme, mas sugere uma aproximação mais latente com aquela realidade – e ganha mais relevo ao final do filme com uma ideia, ainda que um tanto ingênua, de tomada de poder por parte da população da periferia.

Vale lembrar, no entanto, que a trama do filme é inspirada nas vivências dos próprios jovens que protagonizam o longa – a maioria deles sem experiência prévia com atuação. A história gira em torno de quatro amigos que se organizam para ir ao baile na comunidade onde vivem. Mari (Ma Ry) quer participar da batalha de rap e tenta convence seu namorado, Café (Matheus Correa), a ir à festa também. Japa (Mateus Moura) tem de vender a “mercadoria” de seu chefe, enquanto Gui (Maicon Douglas) está pensando na bilheteria daquela festa que ele está organizando.

Afeto e confronto

O filme estampa um curioso retrato de uma juventude que quer curtir a vida, mas tem também as suas responsabilidades – muitas delas perigosas e não necessariamente edificantes – mas que representam os caminhos que se apresentam para quem mora naquele ambiente. Café, por exemplo, começa o filme se recusando a vender drogas para Nando (Luiz Bertazzo) – depois de já ter passado por experiências ruins de embate com a polícia –, tarefa que acaba indo parar nas mãos de Japa. Por sua vez, Gui tem de enfrentar o dilema de uma possível gravidez de sua jovem namorada.

Inicialmente, Nóis por Nóis trabalha nessa rede de afetos formada pelo grupo de amigos e suas relações de proximidade: companheirismo, namoros, encontros e desencontros. Mas não demora muito para que a realidade social da periferia pese nos ombros dos personagens – em especial as questões relacionadas ao tráfico de drogas e à repressão policial.

Quando um dos personagens desaparece sem motivo aparente, os amigos ficam em alerta, e as questões que envolvem os negócios escusos em que eles estavam envolvidos começam a vir à tona. O filme não necessariamente condena ou glorifica os atos dos personagens, porém faz uma clara denúncia sobre a forma como as forças policiais – forças do Estado, portanto – tratam os moradores da periferia, sempre vistos como suspeitos.

Enquanto isso, a polícia assume essa posição de autoridade, na maior parte das vezes arbitrária, como na ilustrativa cena de uma revista policial em torno de Japa e outros garotos sem nenhuma razão óbvia, ou na maneira como eles invadem as casas das pessoas em busca de “elementos suspeitos” quando lhes é conveniente. Curiosamente, é o próprio Muritiba quem interpreta o sargento que comanda as atividades policias naquela área.

Naturalismo

Nóis por Nóis tem esse claro tom de denuncismo e enfrentamento, colocando-se claramente a favor dos oprimidos. Os diretores filmam com muita propriedade esse tipo de tensionamento que paira no ar a todo instante. Muritiba abandona a encenação controlada e estudada de seus filmes anteriores, um tipo de mise-en-scène bastante rígida usada no início de carreira, e assume agora um tom mais livre, seja no uso de câmera na mão ou na busca por um tipo de direção de elenco que busque um naturalismo mais próximo da vivência das pessoas daquela comunidade.

No entanto, o filme não escapa de uma costura de roteiro um tanto rocambolesca, dada as muitas voltas que sua trama apresenta, idas e vindas que fazem parte desse tipo de narrativa policial a que o filme se entrega. São fragilidades que se somam enquanto artifícios que podem ser vistos como caminhos fáceis para o roteiro seguir adiante (como o fato do celular da vítima, quase que motivo inicial do seu sumiço, ser deixado para trás tranquilamente por seus algozes).

Ainda assim, o desaparecimento de um jovem na periferia é o estopim para que a rede de negócios e acordos velados seja exposta como uma bola de neve a inchar em termos de seriedade e gravidade, colocando em evidência o envolvimento de moradores e da própria polícia no caso.

O desenrolar da trama ganha contornos muito relevantes e claramente críveis naquela dada realidade, a partir também de todo um imaginário que espectador possui em torno de casos e imagens de violência nas periferias, algo a que temos contato através dos noticiários, por exemplo. Como última cartada, aliás, o filme chega a utilizar imagens reais, de várias fontes, em que a população parte para cima da polícia em manifestações e confrontos nas ruas. Pode parecer utópico, mas a aposta do filme recai na conscientização e consequente tomada de poder pela população periférica enquanto caminho possível e necessário a se tomar, dado o estado das coisas no Brasil de tamanha disparidade social.

Nóis por Nóis (Idem, Brasil, 2018)
Direção: Aly Muritiba e Jandir Santir
Roteiro: Aly Muritiba, Jandir Santir e Henrique Santos

*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 14/03/2020)

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