Mostra de Tiradentes: Açucena

Dona Guiomar tem 67 anos de idade e todos os anos comemora o aniversário de 7 anos de sua boneca, Açucena. Ou comemora o seu próprio aniversário, num misto de celebração de si e da infância – e não sabemos ao certo o quanto estão desassociados de fato. É essa personagem inusitada, mas nada exotizada, que Isaac Donato filma em Açucena, longa baiano que abre a Mostra Aurora desta 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes. Guiomar mora na Região Metropolitana de Salvador, longe do centro urbano, embora o filme não especifique necessariamente o local exato. Sua casinha está colada com algumas outras em uma dada região, e mesmo aí ela se diferencia: com as paredes cor-de-rosa, por dentro e por fora, a pequena e humilde casa se destaca das demais, todas pintadas de branco.

Pois a paixão de dona Guiomar por suas bonecas e por um lado lúdico que a aproxima de um comportamento de criança são também dados de distinção e singularidade. Nesse sentido, é fundamental pensar nas escolhas de encenação que o diretor e a equipe criativa do filme escolhem para filmar essa mulher e a festa de aniversário que se aproxima. Isso porque seria muito fácil observá-la do ponto de vista do inusitado e do estranho, armadilha na qual o filme não cai.

Curiosamente, logo nos primeiro minutos, a trilha sonora pontua tons que sugerem algo de suspense ou dentro do campo do fantástico, quase que levando o filme para um registro de gênero. Mas felizmente a trilha abandona tal motivo sonoro para se entregar à mais pura realidade concreta e cotidiana da vida daquela senhora. O filme demora, inclusive, a revelar de fato o rosto de dona Guiomar, incialmente filmada de costas ou de lado, ou então em planos aproximados que cortam a sua face. Mas logo o filme a revela integralmente, assim como se dedica a observar seu comportamento e personalidade dentro daquele microcosmo muito particular em que a recorta, sem precisar denotar extravagância ou excepcionalidade.

Cai por terra, então, qualquer impressão de estranheza ou bizarrice que o filme poderia assumir para fora de uma realidade palpável, e Açucena torna-se um retrato dos mais vivazes e respeitosos de uma senhora no seu mundo que ela faz questão de compartilhar com os demais – conosco, via cinema –, sem que o filme o trate como algo deslocado ou excêntrico.

Ao contrário, o filme encontra um lugar muito preciso de distanciamento necessário ao mesmo tempo em que faz o esforço de nos situar naquele espaço em que não apenas Guiomar, mas todos os demais – filha, neta, parentes, vizinhos e agregados – estão engajados na celebração e nos cuidado com as bonecas, com os preparativos para a festa e, sobretudo, com a felicidade daquela senhora. Em nenhum momento há desconforto por parte de ninguém, incluindo aí a própria instância fílmica, em relação ao que se se dá em tela, e o filme assume com muita segurança a naturalidade dos comportamentos, sem querer fazer parte do jogo de fabulação.

Ou seja, o filme não se mostra imbuído da necessidade de reproduzir ou de algum modo elaborar um gesto narrativo e formal que não lhe cabe porque este, em si mesmo, é muito próprio de Guiomar. Se ela fabula uma relação de intimidade e ludicidade com suas bonecas, tal gesto só pertence a ela; nem mesmo os mais íntimos brincam e conversam com as bonecas como dona Guiomar o faz. E isso permite que haja até mesmo algumas brincadeiras das pessoas ao redor sobre isso, como quando sua filha insinua jocosamente que Açucena venha ajudar nos preparativos da festa – uma vez que ela é tratada como uma pessoa real por Guiomar – ou quando sua neta ironiza os doces que Açucena quer ou não quer durante a recepção (“quem tem dinheiro é outro nível”, a neta diz). Apesar disso, estão todos, alegremente, engajados nas comemorações.

O próprio mistério da presença e lugar de destaque de Açucena na festa é tratado com certo mistério, muito embora o filme não precise transformar isso em algo centralizador das atenções – todo o gesto narrativo se dá nas miudezas dos atos de cada um em cena.

Até o final do longa, mesmo nas cenas da festa, o filme continua privilegiando, via fotografia assinada por Flávio Rebouças, planos mais fechados, filmados por trás de portas e janelas, como se estivesse mesmo espreitando aquele ambiente e os passos dos personagens, e nunca pudesse acessá-los por inteiro, nem fazer um retrato amplo e contextual, porque não existe realmente tal pretensão, postura sustentada até o momento em que se confundem os parabéns para Açucena-Guiomar.

Açucena (Brasil, 2021)
Direção: Isaac Donato
Roteiro: Isaac Donato e Marília Cunha

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