Mostra SP: Alcarràs

O longa-metragem de estreia de Carla Simón, Verão 1993, é um delicado drama familiar sobre uma garota de seis anos que perde os pais e precisa se adaptar a uma nova família, na casa de seu tio. Há um curta recente da diretora, Carta à Minha Mãe para Meu Filho (disponível atualmente na plataforma de streaming MUBI), que como o próprio nome já diz, é uma carta-filme que a própria diretora endereça à mãe já falecida, mas com o intuito de ser um documento afetuoso para o filho que ela ainda está carregando na barriga.

Fica evidente, portanto, o quanto a constituição da família interessa ao cinema da jovem realizadora catalã. Com seu novo filme, Alcarràs, Simón retorna ao ambiente rural da Catalunha onde ela cresceu para observar, com cuidado e carinho, uma família que poderia muito bem ser a sua própria. Os Solé vivem da cultura de pêssegos (todos eles participam das etapas de plantio e cultivo, trabalho braçal e ao mesmo tempo de reunião familiar) numa parte da propriedade que eles pensam ter posse, ainda que trabalhem para um rico fazendeiro local.

Às questões familiares – os adultos com seus problemas trabalhistas, os adolescentes sem grandes perspectivas de vida e as crianças preocupadas apenas em brincar – somam-se os conflitos pela terra (e as exigências nebulosas pelos documentos oficiais a fim de comprovar a posse) e os da modernidade. A instalação de painéis solares tem se tornado uma realidade na região, surgindo como uma espécie de subemprego que passa a substituir o tradicional cultivo da terra. As cooperativas locais passam a lutar contra essas “novidades” que têm deixado os agricultores em situação de ameaça no seu trabalho.

Simón cria, assim, um universo muito palpável em que o macro e o microssocial subsistem e se completam de forma muito orgânica. A família Solé pode ser vista como mais uma refém daquela estrutura agrária que começa a se modificar, mas cada integrante possui as suas particularidades, apesar dos conflitos de cada um não serem tão fortes assim, dramaticamente. Apesar de se apresentar como um filme ensolarado – cortesia da idílica fotografia de Daniela Cajías, beneficiada pelas paisagens belíssimas da Catalunha rural –, o que fica é uma percepção bastante agridoce do que se torna a vida dos membros daquela família.

Não demora muito para que eles se desentendam – o pai não se conforma que seu cunhado tenha se vendido ao projeto de instalação das placas de energia solar, por exemplo, enquanto os demais não conseguem reagir a uma iminente mudança de hábitos, uma vez que a então vida pacata que eles tinham passa a entrar em declínio. Enquanto isso, o patriarca da família, responsável por não ter firmado o acordo pelas terras de modo oficial e em cartório, observa calado e triste a mutação do tempo.

Dito dessa forma, faz parecer que Alcarràs se entrega ao drama rasgado e das famílias à beira do colapso. Existem os momentos de maior exaltação, é certo, mas Simón nunca sobe demais o tom, nunca permite que os personagens se tornem um poço de amargura e rancor, o que levaria o filme ao peso do dramalhão. O seu cinema, ao contrário, tem a cadência da melancolia e das alterações imutáveis no seio familiar, onde existem segredos, desapontamentos, um tanto de afeto, um bocado de birra e afronta, mas sobretudo um sentido de união muito latente.

Curioso pensar que este filme venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim, sendo uma obra tão cadenciada, ainda que tematicamente tenha o seu alcance universal, pelo conflito de gerações e pelas questões sociais envolvendo a distribuição de terras e a sobrevivência da agricultura familiar. É um filme redondo, mas que carece de uma trama um tanto mais forte, de personagens mais marcantes, muito embora o filme pareça muito confortável pela dinâmica que cria para si.

Alcarràs (Espanha/Itália, 2022)
Direção: Carla Simón
Roteiro: Carla Simón e Arnau Vilaró

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