Mostra SP: Miss Marx

Se o trabalho intelectual e o pensamento politizado das filhas de Karl Marx são questões ignoradas por muitos, Miss Marx vem para suprir uma lacuna histórica. Na verdade, o filme se concentra na trajetória da filha mais nova do pensador inglês, Eleanor “Tussy” Marx, ela que de alguma forma deu continuidade ao pensamento questionador e de forte carga social e política que hoje chamamos de marxismo. Eleanor (Romola Garai) era poliglota, ativista política e escreveu uma série de artigos sobre a vida proletária, com notada atenção para a situação das mulheres e das crianças em tal contexto.

Miss Marx, no entanto, sofre de um problema primário para um filme que acentua tão fortemente sua carga política: o de achar que apenas visibilizar uma personagem pouco conhecida, e ainda mais uma mulher feminista nesses tempos de debates acirrados sobre gêneros, é suficiente para endossar uma narrativa inquestionável em termos de importância histórica.

A diretora Susanna Nicchiarelli parece dividida entre a necessidade de mostrar o lado mais feminista de Eleanor, ao mesmo tempo em que precisa confrontá-lo com o paradoxo dela ser uma mulher de vida burguesa, com os privilégios de sua posição social. Eleanor cresceu num lar abastado, possuiu uma vida confortável financeiramente, circulou por ambientes aristocráticos, de famílias bem colocadas na sociedade inglesa, e ainda viveu com um marido atolado em dívidas e que possuía outras mulheres, inclusive um casamento escondido com uma jovem desiludida, algo que a própria Eleanor irá descobrir, mas absorver calada. Uma vida marcada por contradições, portanto, para se dizer o mínimo, o que a torna uma personalidade por demais complexa.

É uma pena que a cineasta não consiga desenvolver a contento nenhuma dessas facetas, com vontade por revelar ou esmiuçar tal personalidade, preferindo um tom de louvação e elogio que, ainda por cima, busca tornar a coisa modernosa demais. O uso do punk-rock como trilha sonora a abrir o filme – e que vai ser usado em outros momentos do longa, ainda que com parcimônia – sugere uma persona aguerrida e combativa, quando Eleanor mostra-se muito mais recatada e do lar do que o filme faz parecer. Nicchiarelli não é Sofia Coppola que fez isso muitíssimo bem em seu Maria Antonieta, e talvez fizesse muito melhor ao filme assumir um tratamento clássico para retratar a personagem.

Se existe um lugar de pioneirismo no que se refere ao tratamento das mulheres e das crianças no debate em torno das lutas proletárias na Inglaterra do século XIX, pensamento que Eleanor de fato desenvolveu nos seus escritos e observações da vida real, isso é muito mal dimensionado no filme, até mesmo subaproveitado. Não basta apenas citar, mostrar que ela tinha um pensamento que seguia neste sentido, mas tentar entender o que reverberou a partir das suas ideias, quais as consequências de suas reflexões nos círculos intelectuais do período, que tipo de discussão isso gerou à época – se gerou alguma repercussão, por que sim ou não.

Isso porque o próprio filme revela situações muito pontuais que direcionam a postura e posição engajada de Eleanor – como na sequência em que ela, após se desvencilhar de um conflito operário nas ruas, é levada a um beco sujo e degradante para encontrar, dentro de uma pobre casa, uma mãe que agoniza com um bebê no chão, provavelmente prestes a morrerem de fome; ela fica horrorizada com isso, mas logo após o filme corta para uma cena adiante no tempo em que Eleanor e o marido encenam um trecho de texto teatral (Casa de Bonecas, do Ibsen) sobre o conflito entre um casal para uma plateia de amigos burgueses. Ou seja, o filme planta os debates políticos que constituem o pensamento combativo da filha de Karl Marx, mas não busca colher os frutos desses embates frontalmente. Resta apenas expurgar os demônios dançando ao som de música alta numa casa fechada, longe da vista de todos.

Miss Marx (Idem, Itália/Bélgica, 2020)
Direção: Susanna Nicchiarelli
Roteiro: Susanna Nicchiarelli

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