Mostra SP: O Anjo

Carlos (Lorenzo Ferro) é um adolescente que quer apenas se divertir, como todos os demais. O rostinho bonito e angelical, junto com os loiros cabelos encaracolados, são um charme a mais que ele carrega, as garotas (e demais interessados) estão a seus pés. Mas é importante dizer que estamos na Argentina controlada pelos militares e, mais que isso, Carlos tem inclinações pouco ortodoxas que pendem para o crime, a morte, a violência. Um poço de candura.

O diretor Luis Ortega tem nas mãos uma incrível história real. Carlos Robledo Puch, aos 17 anos de idade, cometeu uma série de roubos e homicídios, vivendo ao sabor das aventuras inconsequentes. Não à toa, foi apelidado pela imprensa da época de “anjo da morte”. O filme de Ortega carrega a capacidade que o cinema argentino tem de lidar com a história e os traumas recentes do país, e usa aqui a ditadura militar como pano de fundo. Porém, mais interessa ao diretor a trajetória torta do protagonista, ainda que ela mesma seja um retrato sombrio daqueles tempos de impunidade e crime.

Se já havia em Carlos tal propensão para uma conduta imoral e sem escrúpulos, ela vai aflorar mesmo a partir do momento em que ele estabelece contato com a família de Ramón (Chino Darín), um amigo de colégio. Pai e mãe do rapaz são uns crápulas de fundo de quintal – a dita família de bem argentina que deseja ser vista como aristocracia elevada –, especializados em pequenos golpes, roubos e negócios escusos; não demora para que eles percebam em Carlos um fiel e arguto aprendiz nesse maravilhoso mundo da criminalidade. De fato, ele aprende rápido, e logo essa gangue que se forma sai aplicando suas batidas por aí – e é claro que Carlos e Ramón são os que vão a campo de verdade para voltar com dinheiro e bens roubados.

O filme vai abusar do engano de aparências que faz parte da natureza de Carlos a fim de criar o retrato paradoxal dessa beldade monstruosa que ele encarna. Porém, parece satisfazer-se em somente apresentar o inusitado dessa situação e acompanhá-lo na sua trajetória de criminalidade. O Anjo lida com essa banalidade do mal, mas pouco se interessa em tentar explicá-lo ou entendê-lo minimamente (de sua vida, sabemos somente que foi criado pela mãe solteira, encarnada com ingenuidade dilacerante por Cecília Roth).

Tal como o protagonista de Precisamos Falar sobre o Kevin, de Lynne Ramsay, Carlos parece ter nascido com o mal em si incorporado, a perversidade fria e calculada fazendo parte do seu sangue – não como um desejo latente, mas antes como um defeito de caráter que não lhe passa pela racionalidade. Ou seja, ele não faz o que faz porque quer propagar o mal e se alimentar da perversidade, apenas responde a um comportamento natural do seu gênio torpe. A ele falta qualquer tipo de bússola moral, sensibilidade e respeito para com o próximo, e o filme aceita isso como parte constitutiva do personagem.

De fato, Carlos nunca apresenta nenhum tipo de remorso e muito menos culpa por todo o estrago que fez – essa é a construção de personagem que interessa ao longa –, no entanto falta ao filme um polo oposto onde tais preocupações fiquem mais claras e latentes como lugar de posição tomada pela própria obra, a despeito das atitudes condenáveis do protagonista. Do contrário, o filme apenas sugere o prazer despreocupado com que ele comete tantas atrocidades e quase corrobora com elas – no sentido de filmar com agradabilidade os passos do garoto em cada assassinato ou roubo por ele realizado.

Isso porque o longa está colado nesse personagem, quase como se estivesse também rendido e entregue ao seu charme. É válido dizer que, por outro lado, há um acerto em escapar de um possível olhar de julgamento e repulsa em torno do protagonista. Mas se a escolha vai pelo caminho oposto, certo distanciamento ou um pouco mais de complexidade na construção do personagem não fariam nada mal ao longa.

Em outro aspecto, Ortega não se furta em explorar a imagem atrativa que Carlos exerce sobre as pessoas, inclusive com fortes conotações sexuais. Existe mesmo uma dimensão de feminilidade que cerca o personagem e sua aura angelical que facilita também uma inclinação para certa tensão (homo)sexual aflorada e sugerida em muitos momentos do filmes, em relação a vários outros personagens. É mais uma camada a reforçar o encanto que ele desperta naqueles ao seu redor. Um encanto cercado de mistérios e de uma estranha pulsão de morte.

O Anjo (El Ángel, Argentina/Espanha, 2018)
Direção: Luis Ortega
Roteiro: Luis Ortega, Rodolfo Palacios e Sergio Olguín

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