Um dândi egóico, um hedonista inveterado, tio Marcelo que pode recordar suas vidas passadas, um jovem velho em busca de experiências sexuais, um homem sedento por apresentar toda sua bagagem erudita e referências cultas. Em torno desse personagem sui generis constrói-se A Rosa Azul de Novalis, de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, uma viagem noite adentro na mente e nos pensamentos de um homem de muitas faces. Não que ele seja desconexo ou desvirtuado – talvez tal impressão se imprima pelo modo fragmentado com o que o filme o revele; longe disso, Marcelo sabe muito bem o que quer dizer e como.
O filme não deixa de ser a continuidade da pesquisa recente de Vinagre, agora co-dirigindo com Carneiro, sobre a intimidade e o vasculhar tão frontal de indivíduos, algo que já aparecia muito fortemente no curta Filme Catástrofe (a conversa a dois que é uma forma de abertura de si) e depois ganhou contornos mais amplos em Lembro Mais dos Corvos (primeiro longa de Vinagre, produzido por Carneiro).
No entanto, é preciso estabelecer desde já que esses longas perseguem propósitos distintos, apesar de compartilharem o mesmo ponto de partida e certo dispositivo fílmico: Vinagre (sempre ele), por trás das câmeras, filma e conversa com o protagonista (Marcelo ou Julia Katharine) num espaço curto de tempo, cerrado em ambiente único, e os filmes se fazem por meio desse desnudamento do sujeito em evidência, que acaba sendo também sujeito de condução da narrativa e não apenas mero objeto de observação. Porém, se no filme anterior Julia Katharine personifica ela mesma e sua história de vida envolta ainda em um jogo de encenação e criação, o filme novo é muito mais calcado na proposição de uma fabulação que aponta mais para o ficcional e para uma construção narrativa mais rígida, em certa medida calculada e controlada – pelo menos de modo mais visível.
É certo que o ator Marcelo Diorio e sua proximidade com os diretores fazem com que este roteiro contenha muitas experiências e percepções pessoais dele próprio, vivências que parecem mesmo (e eu posso estar enganado aqui) ser o motivo de união dos três para a realização desse filme; no entanto, tais particularidades não se mostram tão evidentes assim na tessitura fílmica, não fazem questão de se revelarem para o público. Junto a isso, existe toda uma operação de teatralidade, de fabulação, de gestual dramático, de ampliação das temporalidades que lançam o filme para um outro campo de confronto com a narrativa, com as histórias que são ali relatadas, com as marcas da ficção (não quero falar aqui de autoficção porque subtende um jogo de tentar descobrir o que é ou não “real”).
Daí que A Rosa Azul de Novalis ganha firmeza em si só, status próprio de filme que apresenta suas pretensões e segue os caminhos que dão conta de sua proposta. O trunfo maior do filme é se mostrar a serviço desse personagem e de ir além na sua disposição de falar – que é disposição de se revelar – muito facilmente de si, como se ansiasse por aquilo (algo diferente da postura de Katharine no outro filme). Seguem-se aí histórias de infância, casos pessoais, encontros e percepções sobre as pessoas, muitas doses de sexo e erotização. Desse corpo em exposição, o cu acaba sendo (ou naturalmente é) eleito como fonte de investigação interior, de autoconhecimento que se alcança pela busca e encontro, literalmente, de si.
Desde seu primeiro curta-metragem, Filme para Poeta Cego, Vinagre já lidava com a exposição e a potencialidade do corpo, assim como Carneiro também já o fazia em um curta como Copyleft – o que torna clara a parceria dos dois para continuar esse tipo de pesquisa e procura. Daí também que este outro corpo apresentado aqui, junto à sua consciência, investiga não só os desejos, a profusão erótica, o esgarçamento do corpo – justamente como consequência da profusão erótica –, como também certa busca transcendental, metafísica, sobre a origem e o destino do homem – para qual buraco iremos afinal?
À parte todas essas discussões e questões que surgem no filme com muita naturalidade e sem peso ou autoimportância – até porque elas logo são substituídas por outras elocubrações –, é muito bom ver os realizadores soltando-se na construção das cenas, elaborando mais, seja no trabalho de iluminação, seja nos momentos em que a fabulação ganha o corpo da cena, inesperadamente. Para além da própria vocação ficcional que a presença de Diorio impõe ao jogo encenado, o filme segue caminhos próprios e muito coerentes com aquilo que de fato parece propor, desde a primeira fala e postura do personagem, sem excessos – ou antes que os excessos sejam todos bem-vindos e bem embalados por um acordo que o filme sugere ao público: um desnudamento em muitos sentidos, profundo, cavernoso, obscuro e luminoso.
A Rosa Azul de Novalis (Brasil, 2018)
Direção: Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro
Roteiro: Gustavo Vinagre e Marcelo Diorio