De volta ao Pelô*
Em determinado momento de Ó Paí, Ó 2, Roque (personagem de Lázaro Ramos) confronta um homem branco sobre uma determinada questão que envolve as diferenças raciais e parece que ele vai elevar a voz, quando o próprio personagem nos surpreende dizendo: “Você tá achando que eu vou gritar, né?”. A cena remete ao embate do mesmo Roque com Boca (vivido por Wagner Moura, ausente nesta continuação) no primeiro filme, cena que tem viralizados nas redes sociais nos últimos anos.
O tom da discussão é diferente e talvez mais maduro, apesar de ainda se mostrar necessário na sociedade, mas o que sustenta ambas as propostas é o mesmo princípio da defesa e potência da raça negra, marcas carimbadas deste grande projeto multimídia. Ó Paí, Ó 2, já em cartaz nos cinemas braseiros, depois de pré-estreias lotadas na capital baiana, atualiza alguns de seus temas e abordagens, mas mantém intacto seu viés político através da comédia.
Nem mesmo a mudança na cadeira da direção alterou o curso de um projeto tão coeso. A cineasta baiana Viviane Ferreira, hoje radicada em São Paulo, foi convocada pelo Bando de Teatro Olodum para assumir o controle da trupe, como eles gostam de nomear a equipe que, dessa vez, está recheada de nomes baianos nos postos criativos, atrás e à frente das câmeras.
“Como uma boa filha das águas, soube pisar no massapê, atenta para respeitar a história pregressa da franquia Ó Paí, Ó e o método de criação colaborativa do Bando de Teatro Olodum”, pontuou a diretora, em entrevista para o jornal A Tarde. Para uma história que tanto carrega a identidade baiana negra, uma diretora com ela era essencial ao filme.
O projeto começou como peça de teatro, teve uma primeiro passo no cinema que alavancou o seu sucesso – e das pessoas que faziam parte disso – e chegou mesmo a ter duas temporadas como minissérie na TV Globo. Mas segundo Lázaro Ramos, que também concedeu entrevista ao A Tarde, não havia planos para fazer uma continuação do filme. No entanto, a mobilização nas redes sociais foi essencial para mudar isso.
“Estudantes começaram a refazer cena em cursos de cinema, postando e marcando a gente; Emicida transformou um pedaço em música, colocando na abertura do show; a cena com Wagner viralizou; toda hora alguém falava ‘você é Bahia ou Vitória, afro?’; começou a circular figurinhas de celular com os personagens”, exemplificou o ator e também produtor associado do longa.
Aquilombamento
Com isso, ele conta que o grupo de trabalho em torno do projeto se reuniu pra investigar se havia mais coisas pra tratar. “Foi a oportunidade para ver, depois de 15 anos, como o Brasil tratou os temas que os personagens representavam no primeiro filme”, explicou Ramos. Com isso, Ó Paí, Ó 2 ganha vida retomando grande parte dos personagens icônicos que ajudou a cristalizar.
A trama do filme parte do drama de Neuzão (Tânia Toko), dona do bar no Pelourinho que era um dos epicentros da trama. Ela foi passada para trás por negociadores escusos e seu bar foi tomado por um coreano misterioso. Quando ela some dos arredores, todos ficam preocupados e tentam descobrir o que houve.
Ao mesmo tempo, Roque tenta fazer sucesso com uma música para ser lançada no 2 de Fevereiro que se aproxima; Dona Joana (Luciana Souza) lida com problemas psicológicos depois da perda dos filhos, enquanto o mulherengo Reginaldo (Érico Brás) e a empoderada Maria (Valdinéia Soriano) seguem brigando, divorciados, apesar de dividirem o mesmo teto. Esses e outros personagens, velhos conhecidos ou novos rostos, seguem com seus trejeitos e vicissitudes que se ampliam até geograficamente – o Rio Vermelho ganha destaque por conta da festa de Iemanjá.
Mas até mesmo o processo de construção do filme permanece muito ligado a um sentido comunitário. “Esse é um filme feito na escuta, do público e dos arquétipos desses personagens. Por isso ele está tão presente na vida das pessoas. Os atores foram para as ruas pesquisar os personagens, levantar os temas, o jeito de falar, de lidar com os problemas deles. O projeto sempre foi feito assim. Então a gente fala de aquilombamento; e se o filme é sobre aquilombar, os bastidores também são”, pontuou Ramos.
O ator destaca esse gesto comunitário como o grande diferencial do projeto, ao que a diretora complementa: “Partilhar o pertencimento racial e territorial com o Bando de Teatro Olodum foi importante porque potencializou o acesso à compressão da realidade particular do que é ser um corpo negro baiano autorizado a sonhar, apesar dos ‘tantos nãos e tantas dores que nos invade’”.
Filme de Bando
Ainda segundo Ramos, o tempo foi passando e a autoria do Bando de Teatro Olodum foi se reafirmando e se ampliando. “O Bando é dono, proprietário, construtor, criador do projeto. É assim que tem de ser, por isso tem que estar em todos os setores”, afirmou.
De fato, nota-se nesse filme uma integração muito maior da equipe criativa em muitos campos do filme, algo que se nota nos créditos do longa. Além disso, Ferreira destaca o método que o grupo vem desenvolvendo ao longa de uma trajetória de mais de 30 anos. “O Bando aprimora cotidianamente o que conhecemos no mundo como teatro negro e traz a visceralidade do corpo que fala nos palcos para também falar nas telas”.
Até mesmo o tom de exagero e caricatura, que era mais marcante no primeiro filme, ganha nuances mais equilibradas aqui. Os personagens continuam lidando com os mesmos temas (direito à moradia, luta contra racismo, afetividade, violência) de modo engraçado e jocoso, deixando entrever doses de crítica social que só a comédia é capaz de acentuar. “Quando se começou a fazer o exercício desse segundo filme, outros temas apareceram: saúde mental, criação de filhos, a nova geração e uso da tecnologia”, relembrou Ramos.
As questões levantadas pelo filme se acumulam, mas Ó Paí, Ó 2 não necessariamente encontra um caminho próprio para contorná-los. O conceito do projeto já está tão amarrado, que o filme segue apenas o curso do rio, sem desgastá-lo, com muito bom humor e alto astral, celebrando a cultura negra e baiana em torno daquelas pessoas que fazem do Pelourinho um universo particular.
Ó Pai, Ó 2 (Brasil, 2023)
Direção: Viviane Ferreira
Roteiro: Viviane Ferreira, Daniel Arcades, Elísio Lopes Jr. e Igor Verde
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 24/11/2023)