Os Banshees de Inisherin

Como nasce o ódio*

“Eu só não gosto mais de você”. Simples assim. É dessa forma que Colm (Brendan Gleeson) justifica para Pádraic (Colin Farrell), o fim da amizade de ambos. O ponto de partida de Os Banshees de Inisherin, novo filme do realizador inglês Martin McDonagh, é sobre uma grande amizade desfeita. Isso é só o começo porque o filme vai revelar outras nuances escondidas em um clima de melancolia que paira no ar de uma ilha afastada da Irlanda nos anos 1920.

O filme é também um dos grandes concorrentes ao Oscar deste ano – aparece na lista com nove indicações, incluindo filme, direção e vários de seus atores, todos ótimos em cena. Sem dúvida, é um dos melhores longas dessa leva da temporada de premiações recente, especialmente por partir de um crescendo emocional que se dá entre os personagens.

Primeiro, o filme lida com o inesperado rompimento da amizade com muito humor. Pádraic não consegue entender os motivos que levaram Cólm a isso, e boa parte do filme segue as tentativas do personagem de Farrell em tentar retomar o contato do amigo ou mesmo arrancar dele um motivo mais palpável para o término. Enquanto isso, ele desabafa com sua irmã, a bela Siobhán (Kerry Condon), e com outro companheiro, o jovem e inconsequente Dominic (Barry Keoghan).

Pádraic possui traços de insistente incompreensão, mais um tanto de uma ingenuidade quase infantil, que o torna um personagem muito carismático, além de um prato cheio para o exercício de um humor ácido por parte do roteiro. Colm, por outro lado, mantém sempre uma expressão séria e mostra-se muito determinado nas suas atitudes – há de se perguntar, inclusive, como pessoas tão opostas eram tão amigas anteriormente.

Do humor à violência

De qualquer forma, o impasse entre os dois se estabelece, e o filme aumenta as doses de dramaticidade a partir do momento que o humor cede lugar a atitudes mais drásticas e violentas. Colm ameaça se automutilar caso Pádraic continue insistindo nas suas tentativas de reaproximação e isso causa consequências desastrosas para todo o círculo de pessoas próximas aos dois na ilha.

Os Banshees de Inisherin é, portanto, um filme de camadas muito sobrepostas – entre o humor e a tensão, há espaço para se falar sobre amizade e solidão, desespero e crueldade, e também sobre quais rumos tomar na vida. Siobhán fica tentada a deixar a ilha e agarrar uma oportunidade de emprego que a deixaria distante daquele ambiente em que cresceu e se sente segura, apesar da energia masculina que impera no local.

Barry, apaixonado por Siobhán, é renegado por ela, além de tentar não seguir um caminho de inconsequências – ele é filho do policial local e, ao invés do exemplo, o pai prefere criar o rapaz na base da opressão e da violência doméstica. E essa necessidade de tomar um prumo na vida é um dos motivos dados por Colm para romper com Pádraic, que não possui nenhuma expectativa de futuro, muito embora os motivos pareçam ser mais sérios.

Mito e política

Apesar de não explorar com objetividade, o filme vislumbra dados contextuais e políticos relevantes. Isso porque do outro lado da ilha, no continente, um conflito bélico está em curso (é possível ver, de relance, alguns bombardeios) e tudo leva a crer que se trata da Guerra Civil Irlandesa – conflito que rivalizou nacionalistas e republicanos em prol da independência ou subserviência da Irlanda em relação ao poderoso e vizinho Reino Unido.

Tal rivalidade é sentida também nas falas de alguns personagens que citam o conflito a partir da maneira pejorativa como trata ora os republicanos, ora os nacionalistas. O embate religioso também se faz presente, contrapondo católicos e protestantes – o que mais tarde provocaria um grande fluxo migratório de protestantes para os Estados Unidos.

Há, em meio a isso tudo, uma dimensão um tanto mitológica que permeia o filme. As “banshees”, segundo a tradição céltica, refere-se a antigas lendas que as personifica como criaturas mágicas, geralmente mulheres, conhecidas como mensageiras da morte; em outras versões, são pintadas como fantasmas ou fadas. De qualquer forma, elas carregam o fardo da morte.

No filme, há uma personagem que faz a ponte do realismo com o fantástico, mesmo sem adentrar de fato neste universo mítico. É a senhora McCormick (Sheila Flitton), uma velha misteriosa que vive no lugar e ronda os personagens, em constante observação das coisas, de modo muito misterioso e mesmo macabro, também prenunciando mortes.

Se as contendas políticas e religiosas são apenas sugeridas pelo roteiro e a dimensão mitológica se faz presente de modo sutil, é possível entender o desentendimento repentino entre Colm e Pádraic como uma grande alegoria sobre as rivalidades, sejam elas de que ordem for. No fundo, Os Banshees de Inisherin é um curioso e ardiloso estudo sobre como nasce o ódio, aquele mais irracional e de origem desconhecida que apenas leva ao desacordo e à destruição. Nada mais ilustrativo do nosso tempo presente.

Os Banshees de Inisherin (The Banshees of Inisherin, Irlanda/Reino Unido/EUA, 2022)
Direção: Martin McDonagh
Roteiro: Martin McDonagh

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 05/02/2023)

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