Batem à Porta

O cineasta indo-americano M. Night Shyamalan nunca foi um diretor de filmes fáceis e de grande adesão do público. Muitas de suas histórias possuíam reviravoltas finais surpreendentes (como O Sexto Sentido e A Visita) ou tramas alegóricas que precisam ser vistas sob lentes metafóricas e não realistas (Fim dos Tempos e A Dama na Água), fora a aproximação com o suspense e o terror que está sempre presente em suas produções.

Seu mais novo filme, Batem à Porta, é um grande exemplo desse segundo grupo, uma história audaciosa que envolve o fim do mundo e a possibilidade que uma família tem de evitar o apocalipse. Para tanto, Shyamalan elege uma família não tradicional, formada por dois homens gays (interpretados por Jonathan Groff e Ben Aldrige) e uma filhinha adotiva de origem asiática (a carismática Kristen Cui).

Eles estão passando as férias numa cabana, isolados no meio de uma floresta, quando recebem a estranha visita de um grupo não menos estranho de desconhecidos. Primeiro, Leonard (Dave Bautista), uma espécie de líder do quarteto, tenta se aproximar da garotinha que está brincando na mata. Quando a menina foge para dentro de casa, Leonard e seus companheiros tentam invadir o local à força.

Após a conversa inicial de Leonard com a criança – o contraste entre o porte físico avantajado de Bautista em relação à miudeza da menina é evidente –, Batem à Porta investe em puro exercício de tensão que se mantém até o final. Os 20 minutos iniciais são impressionantes nesse sentido e Shyamalan filma com uma precisão impecável de cena.

E eis que o desafio se revela muito maior para aquela família: cercado pelo grupo de invasores, a eles é dada a opção de sacrificar um dos três para evitar o iminente fim do mundo. O casal Eric e Andrew precisaria indicar e cometer o assassinato de um deles ou da filha, em comum acordo. Antes disso, eles precisam acreditar que aquela contenda é real.

Família e sacrifício

É mesmo difícil crer, de início, nessa trama toda – mas é preciso lembrar que o cinema de Shyamalan, acima de tudo, versa sobre a crença. Acreditar no improvável é o que faz os personagens superarem obstáculos na maioria de seus filmes. Depois, é preciso entender a dimensão alegórica que está por trás de tudo.

Negociar a salvação de todo o mundo ao preço do sacrifício de uma única pessoa é o tipo de decisão ingrata a tomar, mas que coloca em evidência a vida dessas mesmas pessoas. Leonard e seu grupo, inicialmente vilões, depois vistos como agentes da salvação, precisam provar também que estão agindo em prol de uma boa causa, mesmo que precisem violentar o lar daquela família.

Todos os demais tentam provar sua lealdade à ideia de defesa mundial, movidos pela manutenção da suas redes familiares – todos eles também querem salvar seus respectivos lares. Acompanhamos ainda, em flashbacks, o passado de Andrew e Eric, a rejeição daquele relacionamento por parte dos pais do primeiro, as violências sofridas cotidianamente e a complementação da família a partir da adoção da criança. A provação maior está em romper os laços de afeto, tão difíceis de serem atados e arranjados no decorrer da vida.

Além disso, Shyamalan parece reverter uma constância de filmes anteriores seus em que era preciso acreditar no improvável para salvar a família (casos de A Vila, Sinais e certamente de sua obra-prima, Corpo Fechado). Agora, neste filme, crer no improvável (ou seja, na chegada do apocalipse e também na possibilidade de evitá-lo) implica no sacrifício da ordem familiar.

E esse é um passo arriscadíssimo a ser dado, especialmente por se tratar de um casal homoafetivo. As questões morais que estão implicadas aqui ganham uma nuance de debate social que poucas vezes vimos no cinema do diretor, pelo menos com essa atenção para causas minoritárias.

Mas o filme faz questão de pontuar que aquela família não foi escolhida para cometer o sacrifício por ter uma formação não tradicional, mas apenas por ser uma família – muitas outras, em outros momentos históricos, também tiveram que passar pela mesma provação, sugerindo uma constante cíclica da possibilidade do apocalipse, o que justificaria as grandes tragédias que ocorreram no mundo, suspensas a tempo de evitar o fim de tudo.

É curioso perceber que, neste caso, uma família homoafetiva foi a escolhida da vez para representar a Família (com maiúscula mesmo), como uma instituição universal e salvadora. Ao final de Batem à Porta não há uma grande reviravolta como acabou por se tornar uma marca do diretor, mas segue firme a proposição da crença como motora das nossas ações e decisões.

Batem à Porta (Knock at the Cabin, EUA/China, 2023)
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan, Steve Desmond e Michael Sherman

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 05/02/2023)

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