Sol / Entrevista com Lô Politi

Memórias que desaguam*

O arquétipo do filho pródigo que retorna ao lar tem sido, constantemente, resgatado nas narrativas cinematográficas e literárias. Filmado na Bahia, Sol, filme novo da cineasta paulista Lô Politi, faz uso desse arco dramático ao mesmo tempo em que o reinventa. Pois Theo (Rômulo Braga) acaba recebendo uma ligação que dá conta do estado de saúde do pai, a quem não vê há muito tempo, atualmente à beira da morte.

O filho resiste o quanto pode em sair de Salvador e partir para o interior do Estado, numa cidade distante e árida à beira do Rio São Francisco. O personagem guarda suas mágoas do pai, especialmente por ter se sentido abandonado no passado. Ainda assim, resolve seguir viagem para resolver a situação.

O detalhe é que ele não está sozinho. Sua filha adolescente, Duda (Malu Landim), está passando as férias com ele – a garota mora com a mãe, pois o casal já se divorciou. Acabam que os dois partem em viagem, a contragosto de ambos, mas que será emocionalmente turbulenta para todos os envolvidos.

“A ideia era conceber uma história que parecesse ser sobre o filho com o pai, mas ao longo do filme, sem que você se dê conta, nota-se que a verdadeira questão era com a filha. Parece uma história de abandono, mas é sobre desconexão e reconexão”, afirmou Politi, em conversa com ATARDE. A diretor e parte da equipe do longa estiveram em Salvador para a pré-estreia do filme que entra em cartaz hoje nos cinemas.

Sol é, portanto, um drama familiar de mão dupla, forjada paralelamente. Theo e a filha possuem uma boa relação, amigável e afetuosa, mas há algo de incógnito ali, muito por conta de certa frieza e de um estado mais introspectivo do pai. Ele desconhece muitas das manias e vontades da filha.

Quando eles encontram o pai e avô (vivido pelo sempre incrível Everaldo Pontes), trancado em um mutismo depressivo, as coisas se bifurcam: enquanto Theo precisa enfrentar as duras lembranças do passado e as cicatrizes abertas que tem com o pai, a relação de Duda com o avô torna-se algo muito mais afetuosa e cativante, uma conexão realmente inesperada.

Sobre essa relação, a diretora afirmou: “Theo está desconectado do pai há muito tempo, ele se sente abandonado por aquele homem sem saber o motivo. E quando ele se dá conta, está reproduzindo o mesmo comportamento com a filha”.

Paisagens baianas

Lô Politi explicou também o que levou uma paulista a filmar em terras baianas: “Eu tenho uma relação muito próxima com a Bahia, já filmei muito aqui. Além disso, na trama do filme sempre teve esse pai que se perdeu no interior do país, e desde o começo eu queria que fosse em um lugar seco. Já o Theo é um cara ressecado por dentro, mas mora num lugar úmido, de frente pro mar. Então foi ideal que essa história se passasse na Bahia”.

A diretora diz que brincou muito com os signos contrastantes do sol e do rio/mar, fogo e água, secura e umidade. O filme estabelece o tempo todo esta relação de dualidade dos elementos, que se refletem na própria dinâmica dos personagens e dos seus sentimentos.

Quando Theo e Duda chegam à cidade interiorana onde o pai está internado, as configurações dramáticas mudam um pouco e as três gerações precisam lidar com suas frustrações e anseios. O filme também muda e se assume como um road movie, a partir do trajeto inverso que eles passam a traçar.

Ainda assim, a paisagem baiana está a serviço da narrativa. “No road movie, normalmente explora-se uma paisagem bonita e há certa poesia nisso. Mas, muito mais que a estética e a poesia, eu queria que essa paisagem influísse na própria dramaturgia”, conta a diretora, referindo-se à dualidade entre a aridez e a umidade. O filme foi rodado entre as cidades de Curaçá, ribeirinha do Velho Chico, mas também em Cachoeira e arredores, além de Salvador.

Tempo cruel

Politi conta também que as filmagens na Bahia foram muito tranquilas, dada a pesquisa e preparação intensas para realizar o filme em diversas locações distintas. Já a relação com os atores principais (quase todos de fora da Bahia; apenas a pequena Malu – com10 anos na época das filmagens – era de Salvador) foi se desenvolvendo aos poucos.

“Nós conseguimos um tempo de ensaio com os atores muito profundo. Foram três semanas fechados numa sala ensaiando. E no final eles pareciam uma verdadeira família. Isso foi um laboratório natural, especialmente para ela que nunca tinha feito nada para cinema ou TV”, relata Politi.

Essa boa conexão com os atores ajudou a diretora a focar nas questões dramáticas que mais interessavam ao desenvolvimento do filme, inclusive na maneira como o personagem de Theo nota que é possível, de alguma forma, resgatar o tempo perdido.

“Ele começa a perceber que tem amor para todos os lados, só que pra ele não dá mais tempo de resolver com o pai. O tempo é super cruel com o amor. Você deixa pra resolver uma coisa na próxima semana, passa outra semana, mais outra, passa um mês, um ano, dez anos, passa uma vida. Mas, no caso dele, ainda dá pra resolver com a filha”, pontua a cineasta.

E a relação de proximidade de Politi com a Bahia tem outros desdobramentos. Ela está finalizando o longa Meu Nome é Gal, codirigido com Dandara Ferreira, sobre os anos áureos da trajetória de Gal Costa (interpretada por Sophie Charlotte) na época da Tropicália. Mesmo com a morte da cantora, Politi afirmou que não mudará nada no filme, que já está quase pronto: “O que muda é a expectativa em relação ao filme. Tem uma vontade maior do público em ver a Gal e de entendê-la melhor”.

Sol (Brasil, 2022)
Direção: Lô Politi
Roteiro: Lô Politi

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 08/12/2022)

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