Ruído Branco

Medo da morte*

Todas as tramas levam à morte. É essa a constatação do professor universitário Jack (Adam Driver) que abre Ruído Branco, novo filme do cineasta norte-americano Noah Baumbach. O personagem está falando sobre as tragédias locais – e o gosto dos americanos pelas mesmas, especialmente sobre o fascínio pelos acidentes de carro. Mal sabem seus alunos que tanto Jack quanto sua esposa, Babette (Greta Gerwig), encaram intimamente o medo da morte, cada qual a sua maneira.

Ruído Branco é um clássico da literatura norte-americana da segunda metade do século passado, escrita pelo premiado Don DeLillo (dono de outro livro que já havia sido adaptado com substância para o cinema em Cosmopolis, pelas mãos de David Cronenberg). O mais incrível nessa adaptação recente é que, escrito e lançado nos anos 1980, época em que a trama também se passa (em plena Guerra Fria, sob os conservadores anos da Era Reagan), a história é mais atual do que nunca.

Jack vive com a esposa e diversos filhos – dois do casamento anterior dele, uma filha do casamento anterior dela e mais uma criança filho de ambos. É o retrato da classe média emergente dos Estados Unidos em uma era de extremo consumismo e de muitas paranoias sociais, sejam elas ambientais, alimentares, morais e científicas – ou tudo isso ao mesmo tempo.

O filme usa da ironia para juntar todos esses elementos e compor um quadro muito rico e complexo de um tempo de transformações e conservadorismo. Há ótimas sacadas no roteiro (como quando afirma que a família é o berço das informações falsas no mundo), todas retiradas do livro original. Aliás, Baumbach tenta fazer uma adaptação a mais fiel possível da obra literária e isso, por vezes, faz a trama soar um tanto apressada porque são muitos os elementos que estão em jogo aqui.

Trata-se de um material muito difícil de adaptar, não pelos desafios narrativos e de produção, mas pela complexidade de informações que estão contidas nos subtextos dos diálogos e das atitudes dos personagens. Condensar isso não é tarefa fácil, mas o diretor (e também responsável pelo roteiro adaptado) faz os seus malabarismos para que as farpas da ironia e do cinismo saltem a cada momento.

A nuvem tóxica

Toda a primeira parte do filme – dividido em três atos, como no seu material original – dedica-se a ambientar o espectador na vida desse núcleo familiar e das idiossincrasias de cada um. Há muito falatório e muitas manias também – uma das garotas é viciada em ler catálogos de remédios, enquanto o filho mais velho adora expor os seus conhecimentos gerais sobre todo tipo de assunto; Jack, por sua vez, desenvolveu um centro acadêmico especializado犀利士
em estudar a obra e a vida de Hitler, criando assim o “hitlerismo”.

Ruído Branco, porém, ganha uma sobrevida a partir de um acontecimento inusitado. O choque entre um trem e um caminhão com produtos químicos gera uma explosão e, consequentemente, uma nuvem tóxica eleva-se aos céus, causando alarme e desespero nas imediações de Iron City.

O que começa como mais uma tragédia urbana localizada, acaba ganhando contornos apocalípticos quando as famílias das imediações do acidente precisam ser evacuadas, incluindo aí a família de Jack. Todos entram no carro e partem para um abrigo próximo, a fim de fugir da nuvem tóxica e da possível radiação que pode causar um sem número de malefícios ao corpo que ninguém sabe ao certo quais são, apenas que são letais.

Nesse momento, o filme se transforma em uma deslocada trama de ficção científica, com ares de filme-catástrofe, ainda que nunca se perca de vista a ironia e o absurdo da situação. Entre a tragédia e a comédia, o filme aproveita-se do episódio para intensificar ainda mais o clima de fim de mundo, associado a possíveis conspirações governamentais e tramas afins.

Sociedade doente

Outro ponto imprescindível para a narrativa, e que ganha maior destaque no ato final do filme, diz respeito ao abuso de medicamentos, capitaneado pela agressividade da indústria farmacêutica

Logo no início do longa, vemos Babette ingerindo um comprimido que ela jura ser apenas uma bala, mas que todos desconhecem – até que Jack e sua filha descobrem o frasco da droga escondida no tampo de um guardador de roupas sujas. Os desdobramentos disso levam a uma trama de mais absurdos, sublinhando o estado doentio de uma sociedade refém das pílulas milagrosas que prometem curar tudo – até mesmo o medo da morte.

Aqui, o tema retorna ao filme com muita intensidade e é quando marido e mulher conseguem compartilhar seus anseios mais profundos – cada qual deseja morrer primeiro que o outro, já que imaginam a dificuldade que é ter de lidar com a perda e o abandono.

Mas mesmo nesse momento em que a trama torna-se mais densa e pesada, Baumbach mantém a escolha em moldar tudo com muita graça e cinismo – o encontro com um grupo de freiras-enfermeiras no final é hilário pela inversão de valores que elas representam.

A ironia fina que faz parte da obra original acompanha o filme a todo instante. Por vezes, tal atributo é sufocado pelo ritmo incessante que a trama ganha, sem dar tempo de digerir muito do que é visto e dito ali. É um problema parecido com as cinebiografias de personalidades famosas, em que toda uma vida precisa ser condensada em um filme de duas horas. No caso de Ruído Branco, é preciso resumir as paranoias de vidas marcadas pelo excesso de informações inúteis e, claro, pelo fantasma maior do medo de morrer.

Ruído Branco (White Noise, EUA/Reino Unido, 2022)
Direção: Noah Baumbach
Roteiro: Noah Baumbach

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 11/12/2022)

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