Zombi Child

Aquilo que fazemos com as nossas heranças*

Como as recomendações de isolamento social parecem longe de acabar, as coisas começam a ficar mais complicadas para produtoras e distribuidoras de filmes que já tinham agenda garantida nos cinemas nas últimas e próximas semanas. Alguns têm preferido lançar seus filmes diretamente em plataformas online, caso desse Zombi Child, que tinha previsão de estreia no Brasil para fins de março.

O filme do cineasta francês Bertrand Bonello estreou em mostra paralela do Festival de Cannes ano passado, e agora pode ser alugado nas seguintes plataformas digitais: iTunes, Google Play, YouTube, Vivo Play e NOW.

Bonello é um habitué dos grandes festivais e não faz um cinema necessariamente palatável, mas também não de todo hermético. Um diretor que não teme correr riscos (caso do seu último filme, Nocturama, que conta a história de jovens que planejam um atentado ao metrô de Paris). Também Zombi Child lida com tema polêmico ao investigar e encenar práticas relacionadas ao culto do vodu de origem haitiana.

O filme se faz em dois tempos: começa nos anos 1960 nas plantações de cana-de-açúcar do Haiti – quando o país vivia um duro regime ditatorial –, onde um homem passa por um processo de “zumbificação” depois de morto, sendo obrigado a trabalhar como escravo na lavoura; em paralelo, já na Paris dos dias atuais, uma garota de origem haitiana chega a um internato só para meninas e tenta se enturmar com as novas colegas.

Bonello nunca foi um cineasta de saídas e abordagens fáceis. Aqui, as coisas começam com esse estranhamento, mas aos poucos vão se conectando, inclusive as duas pontas temporais da história. Apesar do título e da trama, trata-se menos de um filme de horror e mais uma investigações sobre os laços e mazelas coloniais que a Europa branca infligia sobre os povos e países negros, usurpando (e mesmo deturpando) sua cultura e, mais especificamente neste caso, sua religião.

Zumbi escravo

O vodu, assim como grande parte das práticas religiosas originárias dos povos africanos, em suas várias ramificações diaspóricas espalhadas pelo mundo, sempre foram demonizadas e rechaçadas pelas elites brancas. O boneco de vodu, por exemplo, foi amplamente utilizado na literatura e nos produtos audiovisuais como representação de ritual satânico associado ao mal e à vingança.

Pouco se difunde sobre as práticas, matrizes e preceitos que envolvem esta religião sincrética que ganhou maior adesão no Haiti. Em Zombi Child, Bonello aborda a figura do zumbi como resultado de uma magia vodu que realmente é praticada por alguns integrantes da religião, mas que até hoje é pouco estudada, discutida e é até mesmo negada por muitos. No filme, a zumbificação está relacionada à prática da escravidão, uma vez que essas pessoas trazidas de volta à vida eram exploradas como trabalhadores incansáveis nas plantações de cana.

A fim de explorar a veracidade do tema, Bonello – também escritor do roteiro – inseriu na trama ficcional o caso real de Clairvius Narcisse, homem haitiano que supostamente passou pelo processo de zumbificação. Ele é o próprio personagem que no início do longa morre e depois é revivido para servir como escravo.

Certamente o tratamento que o diretor francês emprega para lidar com questões relacionadas à feitiçaria e demais rituais é o mais realista possível, tentando se esquivar de possíveis correlações com um sentimento de medo e terror. A história de Narcisse, tão relacionada à vingança e exploração, ganha até mesmo ares de melodrama familiar ao final.

Heranças históricas

Nos tempos correntes, Zombi Child assume um estranho conto teen. Na escola da Legião da Honra, a vida das adolescentes abastadas segue seu rumo entre os estudos, as fofocas juvenis e o despertar sexual. Enquanto Melissa (Wislanda Louimat), a garota haitiana, é testada para integrar um grupo de garotas, tal qual uma irmandade secreta, Fanny (Louise Labeque) se corresponde com o namorado, ansiando por vê-lo.

A entrada de Melissa no grupo se dá em conjunto com os segredos que envolvem o passado de sua família e sua proximidade com o vodu. O filme lida com essa estranheza de pensar os modos de agir e encarar as coisas a partir do pertencimento a uma religião nos dias correntes – o que inclui a maneira de Melissa lidar com a ancestralidade ou determinados comportamentos seus, como os sons estranhos que ela faz no banheiro e são escutados pelas amigas de internato.

Mas é partir de certa atitude de Fanny, em momento de fragilidade emocional, que o filme investiga com mais afinco – e talvez esteja aí o seu grande tema – a maneira como a branquitude, que tanto condena e estranha certas práticas provenientes de outras culturas, também busca usufruir de certas “alternativas espirituais” quando lhe é conveniente, no caso da religião especificamente.

Para isso o filme precisa forçar um tanto a barra do roteiro e propiciar um encontro um tanto frágil na narrativa – o de Melissa com a tia de Fanny, mulher ligada mais fortemente aos ritos religiosos. Zombi Child também adentra um caminho perigoso da representação de uma ritualística e da materialização de entidades e suas atitudes perante aqueles que os invocam, sem a preocupação de contextualizá-los ou deixar mais claros os seus preceitos e funcionalidades, o que perigosamente explora o caráter meramente aterrador de tais práticas.

De qualquer forma, fica evidente o interesse do cineasta em abordar as mazelas de exploração sofridas e que ainda sofrem os povos da diáspora africana. As heranças históricas dizem respeito não somente ao legado cultural e religioso que esses povos carregam e buscam ressignificar e manter nos tempos atuais, mas também àquelas herdadas das práticas colonizadoras – e, portanto, opressoras – que ganham outras roupagens nas relações contemporâneas.

Zombi Child (Idem, França, 2019)
Direção: Bertrand Bonello
Roreiro: Bertrand Bonello

*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 14/05/20)

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