Meu Nome é Gal

Divina e maravilhosa*

Gal Costa não viu sua vida ser interpretada nas telas do cinema. Mas viveu o suficiente para deixar seu nome marcado na história da música popular brasileira e mundial. Na verdade, ela mesma deu o aval e total apoio para a realização de uma cinebiografia sua, a ser dirigida por Dandara Ferreira, a mesma diretora que, em 2017, fez a série documental O Nome Dela é Gal.

Pois Dandara se juntou à cineasta Lô Politi, que assina o roteiro do filme juntamente com Ricky Hiraoka. E escalaram Sophie Charlotte para viver a juventude de Maria das Graças que chega ao efervescente cenário musical do Rio de Janeiro e vai se transformar na Gal Costa que conhecemos.

É assim que nasce Meu Nome é Gal, a aguardado cinebiografia da artista que estreia na próxima quinta-feira nos cinemas brasileiros, após passar pelo Festival do Rio. Antes de tentar traçar toda a trajetória de uma das maiores vozes do Brasil, o filme decide se concentrar no momento do desabrochar artístico e humano da cantora – entre o final dos anos 1960 até o icônico show Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, de 1971.

É uma ótima escolha, uma vez que a potência musical de uma artista como ela não está apenas no seu trabalho isolado, mas em todo um contexto cultural e sociopolítico que a cercava. Um pouco disso está no filme, que faz um trabalho realmente caprichado em termos de representação de época e de caracterização de personagens, sendo eles pessoas tão icônicas da música e das artes no Brasil.

Gracinha, como costumava ser chamada na intimidade, é a última dessas grandes artistas baianas a sair de sua cidade natal para tentar a vida na capital cultural do país. No Rio de Janeiro, é recebida especialmente por Caetano Veloso (interpretado por Rodrigo Lélis), sua esposa e produtora na época, Dedé Gadelha (Camila Márdila), Gilberto Gil (Dan Ferreira) e tantos outros – nesse momento, Maria Bethânia (interpretada pela própria diretora Dandara Ferreira) também estava próxima do grupo, mas já havia feito sucesso com o espetáculo Opinião e não fazia muita questão de se enturmar ali, apesar da boa relação com todos.

Outra figura importante para esse momento é Guilherme Araújo (vivido por Luís Lobianco), grande agitador cultural e que vai ser o produtor oficial da cantora. É ele quem a batiza, numa das cenas mais marcantes do filme. Maria das Graças dá lugar, definitivamente, a Gal Costa e o seu ímpeto de cantar – ainda que àquela altura ela já fosse uma “filha de João”, pois já havia sido apadrinhada por João Gilberto, seu grande ídolo, que a definiu como “a maior cantora do Brasil”.

Chamado político

O trabalho musical do filme é realmente caprichado. Sophie Charlotte surpreende cantando algumas músicas no filme, enquanto outras são dubladas (a semelhança, às vezes, é tanta que é difícil identificar de quem é a voz ali – e claro que as escolhas não são aleatórias porque a atriz canta músicas menos “desafiadoras”, se isso for possível no repertório de Gal).

Ao mesmo tempo, a própria composição dela, física e vocal, não possui um tratamento caricato e exagerado, no estilo “vejam como eu pareço com a artista real”, algo muito comum em diversas cinebiografias brasileiras. E Charlotte traduz muito bem a timidez e o comportamento reservado que vão evoluir para a imposição e a presença de cena de Gal no decorrer do longa.

No entanto, a chama de alegria e o vigor artístico que emanam da cantora, também de todo aquele grupo formador da Tropicália, ganham um contraponto muito denso pelo momento histórico do país. O final dos anos 1960 e a virada para a década seguinte representaram momentos de maior repressão e perseguição políticas promovidas pelos militares no poder, com o crescimento da censura aos artistas.

Com isso, Meu Nome é Gal revela um tom político muito evidente, para além da forma muito livre com que Gal e todo aquele grupo se comportavam no movimento de contracultura brasileira. Mais que isso, passaram a fazer de sua arte um instrumento de confronto político, com resultados nem sempre positivos – as prisões e o consequente exílio de Caetano e Gil representaram um duro golpe para aquela geração e, sobretudo, em Gal.

O filme se aproveita disso para construir um arco dramático que é sobre como ela, interessada apenas em cantar – para uma jornalista que quer saber de sua vida íntima, ela responde que a vida dela é a música, apenas –, precisa também responder a esse fechamento de cerco e responder à altura com seu trabalho, algo que culmina no icônico show Fa-Tal.

Força estranha

Meu Nome é Gal tem, certamente, uma grande vontade de reviver com fidelidade uma época e os episódios marcantes na vida e carreira da cantora. Dos figurinos aos trejeitos e falas marcantes, passando pelos cenários dos shows (destaque também para a apresentação de Gal no icônico Festival da MPB, da Record, defendendo Divino Maravilhoso, música de alto teor político em plena cadeia nacional de televisão), tudo é muito caprichado.

Mas isso é também um entrave para o filme na medida em que as atenções parecem se voltar para esse tom de fidedignidade constante. No fundo, isso é muito bem-vindo nesse tipo de produção, mas aqui se deixa em aberto uma série de situações que a própria trama convoca e não consegue aprofundar.

Quando Caetano Veloso é vaiado no Festival Internacional da Canção, em 1968, isso serve apenas para demarcar o tom de comoção popular da época, mas pouco se discute sobre como aquilo repercute naquelas pessoas – Gal acompanhava tudo do camarim – quando precisaram sair dali às pressas.

As situações pulam de uma a outra sem uma grande contextualização, sem aprofundamento, apenas como registros que precisam ser feitos por conta da verossimilhança com a realidade representada, já que é necessário passar rapidamente para outro momento chave que eles viveram à época.

Com isso, Meu Nome é Gal ganha, por vezes, um tom protocolar e irregularidade no ritmo das sequências – é fácil se perder na linha do tempo e, quando menos se espera, a situação retratada já é outra. O filme passa rápido demais por muitos episódios quando poderia deter-se melhor em alguns deles. De qualquer forma, há um arco dramático que se fecha bem ao final, quando se assume o propósito de homenagear essa mulher que continuará sendo a voz potente do Brasil.

Meu Nome é Gal (Brasil, 2023)
Direção: Dandara Ferreira e Lô Politi
Roteiro: Lô Politi e Ricky Hiraoka

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 10/10/2023)

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