Sororidade negra*
Desde que foi lançado originalmente como livro, no início dos anos 1980, escrito por Alice Walker, A Cor Púrpura fez enorme sucesso de crítica e público – venceu, entre outros prêmios, o Pulitzer de melhor romance. Não demorou para que fosse levado ao cinema, pela mãos de ninguém menos do que Steven Spielberg. O filme também foi muito bem sucedido à época: concorreu a 11 Oscars e praticamente lançou a carreira de Whoopi Goldberg no cinema.
Nas mãos de Spielberg, A Cor Púrpura já possuía um tom muito exagerado para o drama choroso. Mas em meados dos anos 1980, não existia uma grade cobrança por parte dos grupos identitários em relação às noções de representatividade de quem dirige um filme de tal teor racial.
Isso porque A Cor Púrpura é uma grande referência na cultura norte-americana em se tratando de histórias negras, resistência e discussões sobre racismo. Dessa vez, portanto, elegeram o cineasta Blitz Bazawule para conduzir a nova adaptação – diretor de Gana, radicado nos Estados Unidos, que já havia dirigido poucos filmes, dentre eles O Enterro de Kojo.
Mas ele é conhecido também pela direção e colaboração com Beyoncé no álbum visual Black is King que a cantora lançou em 2020 (disponível como longa-metragem no Disney+). Isso o habilitou para dirigir a nova versão do clássico de Walker que já havia sido transposto para os palcos da Broadway como um musical. Portanto, A Cor Púrpura atual nada mais é do que o arranjo dessa adaptação para o cinema.
A trama se mantém a mesma: no sul dos Estados Unidos, mais especificamente no interior da Geórgia, início do século XX, Celie (Phylicia Pearl Mpasi, na fase juvenil) vive com a irmã Nettie (Halle Bailey) em um estado de quase devaneio, à espera de uma vida adulta de realizações. A dureza e a crueldade do mundo, no entanto, antes mesmo do racismo gritante da sociedade norte-americana, chegam a elas através dos desmandos do pai intransigente.
Celie acaba engravidando, e seu pai lhe retira o filme recém-nascido para “dar a Deus”, nas suas palavras. Ela também é obrigada a se casar com um homem mais cruel e violento ainda (Colman Domingo), além de beberrão. Logo se imagina o calvário que ela vai sofrer nas suas mãos quando passar a viver com ele e seus filhos de outros relacionamentos. Sua irmã chega a fugir do pai para morar com eles, mas ao quase ser abusada sexualmente pelo marido da irmã, Nettie acaba fugindo.
Mulheres negras unidas
Celie (Fantasia Barrino, na fase adulta) vive nas garras da crueldade e remói a solidão e o abandono depois de perder os filhos e a irmã, chamas de amor que ela ainda mantém acesas dentro de si, na esperança de um reencontro no futuro. Troca cartas com uma missionária africana na tentativa de encontrar o paradeiro desses entes queridos que a fazem seguir viva de algum modo.
As narrativas de sofrimento e dor estão intrinsecamente relacionadas à trama do filme. Essa nova versão, no entanto, cria um microcosmo muito curioso em que grande parte das violências sofridas pelas protagonista se dão no interior da própria comunidade negra a que ela pertence – mais triste ainda, no seio da sua própria família. Apenas na segunda metade do filme uma das personagens negras vai sofrer duras consequências ao confrontar uma pessoa branca de certo poder social.
Em contraponto, o longa busca equilibrar esse tom de brutalidade a partir de duas personagens que cruzam o caminho de Celie: primeiro, o furacão Sofia (vivida por Danielle Brooks, única indicada do filme ao Oscar, como Atriz Coadjuvante), esposa do filho mais velho do marido de Celie; e também Shug Avery (Taraji P. Henson), antigo interesse romântico do marido de Celie que foi embora dali e é atualmente uma famosa cantora de espírito livre.
É no encontro com essas duas mulheres de personalidade forte e coragem suficiente para enfrentar o mundo e seus algozes – mesmo que estes sejam indivíduos negros – que Celie irá aprender a despertar para uma nova vida. A Cor Púrpura lida com essa dualidade o tempo inteiro: as prisões e desigualdades sociais e morais em contraste com a possibilidade de quebrar as correntes a partir do espelhamento de vida de mulheres que se reconhecem como irmãs.
O grande problema do filme, no entanto, é que não parece haver meios termos no desenho dos personagens. Ou eles são demasiadamente ingênuos e oprimidos pelas circunstâncias ou são dotados do destemor de quem prefere o embate à submissão; vítimas ou algozes, eles precisam caber nesses arquétipos de modo muito desenhados para que o filme siga seu caminho melodramático e com alguma dose de redenção emotiva no final.
Musical sonhador
O apelo musical do novo filme é certamente seu maior diferencial, mas é uma pena que mesmo nesse quesito A Cor Púrpura pareça muito acomodado nas canções e até mesmo pouco sofisticado em termos de espetáculo visual.
A coisa começa até muito bem: os primeiros números musicais – quando Celie e Nettie são ainda jovens a sonhar com um futuro promissor – possuem um quê de elaboração cênica interessante (a sequência na cachoeira, por exemplo, reflete isso). Mas logo que o filme investe em um tom mais duro e pesado, as músicas apelam para o teor de sofrimento que a protagonista solta através da voz, mas sem apuro visual, algo que prometia crescer no decorrer da trama, mas, do contrário, parece se retrair
Na mesma lógica, o número em que Shug se apresenta pela primeira vez na noite de abertura do bar do marido de Sofia (Corey Hawkins) é o mais sofisticado de todos – alegre, vibrante. Mas esse é só um espasmo de vida que o filme não acompanha. Por que fazer um musical, então?
A Cor Púrpura se beneficia de uma releitura que coloca a questão racial em evidência por parte de figuras que estão inseridas nas vivências e nas discussões da negritude atual, diferente do Spielberg no primeiro filme. Mas o sentido de espetáculo cinematográfico, tão bem associado ao veterano cineasta, se perde aqui, apesar das boas intenções.
A Cor Púrpura (The Color Purple, EUA, 2023)
Direção: Blitz Bazawule
Roteiro: Marcus Gardley, Alice Walker e Marsha Norman
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 11/02/2024)