O Menino e a Garça

Ciclos de vida*

Há pouco mais de dez anos, o animador e cineasta japonês decretou sua aposentadoria (e não foi a primeira vez que ele fez isso) depois de lançar nos cinemas Vidas ao Vento, que deveria ser seu último longa-metragem. A promessa até parece ter durado muito tempo, já que o cineasta lançou apenas no ano passado, no Festival de San Sebastián, seu mais novo trabalho, O Menino e a Garça, já em cartaz nos cinemas brasileiros.

Dado o tempo e o esforço duradouro que a produção de um longa de animação exige, os planos de aposentadoria de Miyazaki não foram muito longe, barrados pelo ócio do gênio criador por trás do famoso e superpoderoso Studio Ghibli. Miyazaki construiu uma carreira sólida no campo da animação, forjando um estilo muito peculiar, seja no traço dos desenhos, sejam nos temas e no tratamento profundo de suas mitologias, o que o coloca entre os grandes mestres da arte de animar de todos os tempos.

Com O Menino e a Garça, ele retoma ao universo da fantasia extraordinária depois do seu filme anterior, baseado na história verídica de um designer de aviões, estar muito mais colado ao realismo. Mas o cinema de Miyazaki sempre pendeu para o fantástico, com pouco ou mais peso, ainda que todos eles encontrem um ponto em comum na dimensão emocional que acabam alcançando.

No filme novo, acompanhamos a trajetória de Mahito (voz de Soma Santoki), um garoto de 12 anos que perdeu a mãe em um incêndio em meio à Segunda Guerra Mundial. Diante da tragédia, o garoto e seu pai se mudam para o interior do Japão na tentativa de refazerem a vida, juntamente com a nova esposa do pai que já espera um bebê no ventre.

Crianças órfãs são personagens constantes na obra de Miyzaki, e aqui Mahito tenta vencer o luto enquanto a guerra segue em curso, mas longe dali. Na sua nova rotina interiorana, Mahito tem dificuldades para se enturmar, especialmente na escola, embora seja acolhido com muito carinho em casa pela madrasta e pelas muitas empregadas que cuidam do local – um bando de senhorinhas engraçadas e futriquentas.

Para sua surpresa, uma estranha garça que ronda o local começa a segui-lo e, de repente, ela começa a falar com o garoto, dizendo que sua mãe está viva. No encalço desse estranho animal falante, Mahito vai entrar em um mundo paralelo em que o passado e presente se cruzam.

Viagem insólita

O Menino e a Garça começa como um retrato muito duro da experiência trágica japonesa na Guerra, o que lembra O Túmulo dos Vagalumes, clássico da animação dirigido por outro mestre japonês, Isao Takahata, também do Studio Ghibli. Até demora um pouco para que Mahito e o filme embarquem de vez na fantasia, terreno que Miyazaki domina como ninguém.

Quando isso acontece, a trama oferece ao espectador um mergulho muito hipnotizante pelas camadas da alegoria e do simbolismo da cultura ancestral do Japão, somados ao empenho imaginativo de Miyzaki, que também assina o roteiro. Uma de suas maiores qualidades é deixar a narrativa sempre imprevisível. Nunca conseguimos adivinhar o que vem a seguir, na medida em que o filme vai nos apresentando novos personagens e criaturas cada vez mais “exóticas” no meio do caminho.

A própria garça do título é um animal esdrúxulo, não apenas por que fala, mas por conta das mudanças no seu corpo a cada nova situação, podendo mesmo ser uma figura híbrida. Mais adiante, pelicanos, periquitos e criaturinhas fofas e arredondadas, chamadas de wara wara, também se somam ao universo mitológico. Tudo isso para criar um novo ambiente em que se convergem tempos e pessoas que ainda farão parte da vida de Mahito.

No percurso do garoto seguindo a garça, ele também tenta encontrar sua madrasta grávida que se perdeu na floresta. Outras pessoas, por sua vez, irão cruzar seu caminho, como a brava Kiriko, uma espécie de marinheira desbravadora, e Hime, uma guerreira que manipula o fogo – todas figuras femininas que, de alguma forma, suprem a ausência materna do garoto.

Mas nessa aventura que Mahito adentra, em um mundo misterioso, maravilho e arriscado, Miyazaki insere uma discussão sobre os ciclos da vida. É como se aquele ambiente fosse uma espécie de limbo em que as almas retornam para a Terra. A presença de um ancião com ares de Criador eleva ainda mais a discussão sobre aquilo que moldamos na vida e como equilibramos as nossas ações. Afinal, que mundo queremos construir para nós e para as futuras gerações?, parece perguntar o filme.

Confluência

Já faz um tempo que Miyazaki alcançou uma maturidade de encenação que o coloca como mestre absoluto da arte que faz, e O Menino e a Garça é apenas a continuidade desse projeto de cinema – e de vida – do cineasta japonês. Podendo ser seu último trabalho para o cinema, o filme possui traços declaradamente autobiográficos, no que diz respeito à juventude do diretor.

Mas é também uma confluência temática e estética aquilo que o animador faz em relação à sua própria obra. As figuras destemidas e aguerridas de seus outros filmes aparecem aqui, assim como a profundidade das discussões filosóficas, tal como em sua obra-prima, A Viagem de Chihiro.

O discurso antibelicista, apesar de mais diluído aqui, lembra as discussões de Vidas ao Vento, assim como a superação do luto, em meio às possibilidades lúdicas, encontravam-se em Meu Amigo Totoro. De O Castelo Animado e de muitos outros, o cineasta retira o conto de amadurecimento e superação que envolve, no final das contas, toda a jornada do protagonista.

Com tudo isso, o filme não deixa de representar também a possibilidade de encerrar outro ciclo: o do próprio Miyazaki, isso se este for, de fato, o canto do cisne do grande animador. De toda forma, O Menino e a Garça reforça o aprendizado humanista de zelar pelo mundo diante da necessidade de entender a morte como um recomeço.

O Menino e a Garça (Kimitachi wa dô Ikiru Ka, Japão, 2023)
Direção: Hayao Miyazaki
Roteiro: Hayao Miyazaki

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 27/02/2024)

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