Anatomia de uma Queda

Uma mulher, muitas sentenças*

Justine Triet é apenas a terceira mulher a dirigir um filme vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, um dos mais importantes e tradicionais do mundo. Seu Anatomia de uma Queda vem dividindo opiniões por onde passa e foi seguramente uma escolha pertinente para a Palma, ainda que não haja nada de muito surpreendente nele. Sua maior qualidade é fazer uma investigação apurada sobre os vícios do olhar da sociedade (machista, portanto) sobre uma mulher em estado de acusação.

À primeira vista, o filme passa como um drama de tribunal como tantos outros, sem nada de muito espetacular para esse subgênero. Mas é com um tom sóbrio e maturidade de encenação que Triet ganha pontos, fazendo do filme um estudo sobre a verdade e sobre a descrença que recai sobre a figura feminina quando está no lugar de acusada, mais até do que sobre o incidente em si.

Sandra Voyter (Sandra Hüller) vive com o marido (Samuel Theis) e o filho de onze anos (Milo Graner) numa casa de campo nos alpes franceses, isolados do centro urbano. Num dia de inverno, pacato, o garoto – que ficou cego depois de sofrer um acidente quando mais jovem – vai passear enquanto os pais ficam a sós em casa, cada um fazendo seu trabalho – são ambos escritores. Ao retornar, o filho encontra o corpo morto do pai no chão, a cabeça rodeada por manchas de sangue, tendo aparentemente caído pela janela do sótão.

Isso é tudo que sabemos de início, pois o filme também não nos revela os pormenores do que aconteceu no pouco tempo em que o garoto se ausentou da casa. Sandra passa a ser a principal suspeita, e presenciamos no decorrer do longa o desdobrar do caso, desvelando a conturbada relação do casal – no sexo, nas rusgas profissionais, nas decisões sobre como criar o filho e tantos outros detalhes que vão sendo descobertos e expostos ao público.

Trier filma tudo isso com uma competência narrativa que já estava presente em seus filmes anteriores, seja na comédia romântica Na Cama com Victoria ou no drama sobre uma mulher em crise de meia idade visto em Sibyl. Nenhum deles, no entanto, possuía a densidade que vamos descobrindo aos poucos neste novo filme, conduzido com muita segurança pela diretora.

Presunção de culpa

O caso em si parece muito simples, à primeira vista. Mãe e filhos ficam em choque com o que parece ser uma morte acidental. Porém, pequenos detalhes da investigação começam a apontar para a participação de mais alguém no que agora pode ser visto como um crime. A esposa, portanto, fica na mira da Justiça já que era a única pessoa presente na casa no momento do acidente.

Trier, ao lado do seu parceiro Arthur Harari, assinam um roteiro que vai crescendo em tensão e apertando o cerco ao redor desta mulher que precisa provar sua inocência. Com isso, o filme também amplia a relação familiar e outras nuances aparecem (as dificuldades financeiras, aquilo que cada um teve que ceder e abdicar em prol da família, as brigas que se mostram cada vez mais constantes – uma delas, mostrada em flashback, é um dos momentos mais dramáticos do filme, um embate entre dois grandes atores – e as traições de ambos os lados).

Ao mesmo tempo, o filho torna-se uma testemunha importante do caso e precisa até mesmo se afastar da mãe para não ser influenciado. Há muito cuidado na maneira como o longa lida com esses aspectos todos que envolvem as investigações iniciais e os passos da policial e do judiciário. Mas é principalmente quando Anatomia de uma Queda se assume de fato como um filme de tribunal que as coisas ficam mais intensas.

As maiores qualidades da obra estão em não investir nas falsas expectativas sobre a culpa ou inocência da mulher, mas ao mesmo tempo não trabalhar com ambiguidades. Não se trata de um filme que busca enganar o espectador para só ao final revelar uma verdade.

Se as ambiguidades são postas em cena, isso se dá muito mais pelos lados da disputa judicial, já que o embate entre o advogado de defesa e a acusação é bem duro aqui. A promotoria faz de tudo para responsabilizar Sandra pelo incidente e incriminar a mulher, mas o filme não segue na mesma linha, sem julgar a protagonista, apenas observando a maneira cruel e muitas vezes misógina com que ela é tratada no meio daquele turbilhão de insinuações.

Verdades em jogo

Aos olhos da sociedade, amparado pela máquina judiciária, é como se Sandra já entrasse no caso como culpada e precisasse, a seu favor, provar sua inocência. Curiosamente, pouco do que se vê no filme revela com propriedade um caso de assassinato – uma briga entre os dois e a vontade dela de matar o marido, mesmo que acidentalmente, por exemplo.

Mas Anatomia de uma Queda é muito menos sobre o que se vê e mais sobre as interrogações que se podem levantar sobre as atitudes e os comportamentos morais de uma pessoa, nesse caso de uma mulher – uma mãe e esposa com suas qualidades e defeitos. Também não é uma questão de se chegar à verdade do caso, mas antes em como as peças do jogo se comportam diante dos detalhes do caso e de como cada espectador tira suas próprias conclusões sobre aquele conjunto.

Junta-se a isso a excepcional atuação de Sandra Hüller. A atriz alemã brilha com a sutileza da montanha russa de emoções que sua personagem experimenta nesse tour de força que cresce à medida em que a reputação e as atitudes da personagem, anteriores ao incidente, são postas em evidência.

Hüller conseguiu fisgar uma indicação ao Oscar de Atriz mesmo diante da campanha truncada do filme – a França acabou escolhendo outro filme para representar o país no Oscar de Filme Estrangeiro, o que se revelou um tiro no pé já que Anatomia de uma Queda tem se mostrado um forte candidato nesta temporada de prêmios, indicado em outras categorias do Oscar. A que tem mais chances de vencer é em Roteiro Original e esse é um dos maiores trunfos do filme.

Anatomia de uma Queda (Anatomie d’une Chute, França, 2023)
Direção: Justine Triet
Roteiro: Justine Triet e Arthur Harari

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 13/02/2024)

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