A Baleia

Preso em si mesmo*

Charlie é um professor universitário que dá aulas online de literatura e escrita. Ele praticamente não sai de casa, mas não por conta da pandemia ou coisa parecida. Ele sofre de obesidade severa e possui muitas dificuldades de locomoção, inclusive no interior de sua própria residência. A Baleia, novo filme de Darren Aronofsky, encontra esse personagem não apenas “preso” dentro de um espaço físico, mas também emocionalmente arrasado pelos rumos que sua vida familiar tomou.

Interpretado com muita entrega por Brendan Fraser, Charlie enfrenta seus problemas de saúde com total displicência. Ele recusa totalmente qualquer tipo de tratamento médico, e o início do filme sugere uma piora no seu quadro de saúde quando ele sofre um princípio de infarto, quase o levando à morte. Quem o ajuda, inicialmente, é um jovem missionário que estava, por acaso, chegando à casa do professor.

Seu porto seguro, no entanto, é representado pela enfermeira (e espécie de filha adotiva) Liz (Hong Chau). Ela é praticamente o seu contato com o mundo, já que Charlie não fala mais com a ex-esposa e com sua filha adolescente – até mesmo para seus alunos, ele dá aulas virtuais com a câmera desligada, em parte com vergonha do próprio corpo.

Nesse meio tempo, ele recebe a visita inesperada da filha, a irritadiça Ellie (Sadie Sink) e isso desperta alguma esperança nele, apesar dos alertas de Liz de que ele pode sofrer um ataque fatal nos próximos dias. Talvez por isso, Charlie se apegue a uma última tentativa de reconexão com a moça que não vê há muito tempo e que odeia o pai porque, no passado, ele as abandonou para viver um romance com um de seus alunos, atualmente já falecido.

É com esse emaranhado de dilemas emocionais e pelos caminhos da vida que ele escolheu, seguido por uma depressão profunda, que Charlie vive em reclusão e negação da sua doença – também do seu comportamento diante das decisões que tomou para sua vida. O filme não poupa o personagem de seus erros e contradições e acaba criando uma espiral de antipatias e angústias, convergindo para uma espécie de expiação moral que ele precisa enfrentar no que podem ser seus últimos dias de vida.

Corpo gordo

Há alguns meses, quando A Baleia estreou no Festival de Veneza, Brendan Fraser já despontava como um grande favorito ao Oscar, dada não apenas a sua forte e consistente performance no filme, mas também por sua transformação física – seu maior concorrente hoje é Colin Farrell, por Os Banshees de Inisherin.

Fraser chegou a engordar 100kg para viver o personagem, além de usar, em algumas cenas, próteses corporais que pesavam mais de 130kg. É ainda ajudado por um trabalho de maquiagem competentíssimo (também indicado ao Oscar nessa categoria) que cria com fidelidade a impressão de um corpo obeso no qual Charlie parece preso.

Mas é também incrível ver a entrega do ator a um personagem nada fácil, cheio de incoerências, relutando com os fantasmas do passado e tentando, ainda, salvar um pouco de futuro. Além disso, Fraser está muito associado a um cinema de ação e aventura (como se esquecer de seu personagem na franquia A Múmia), muito diferente do tipo de entrega que ele precisa fazer aqui, o que potencializa ainda mais a sua composição.

É uma pena que Aronofsky pese tanto a mão no drama (e na trilha sonora), levando Fraser a buscar uma atuação que se exceda na medida em que os dilemas morais de Charlie se ampliam até o fim do filme. Nesse sentido, a performance de Hong Chau (também indicada ao Oscar na categoria de coadjuvante) é a que melhor equilibra o peso do drama, a partir do ponto de saturação emocional de uma mulher que se esforça para ajudar quem não quer ser ajudado.

Dramas implacáveis

O tom de crueza do filme começa já desde o título, que faz referência também a uma redação sobre Moby Dick escrito por um de seus alunos, algo que Charlie insiste em reler sempre que passa mal. Há uma alusão ali à morte da baleia, mas também a um sentimento de compreensão pelo animal, tipo de comiseração que Charlie deseja que tenham por ele, apesar dele próprio nunca apelar para o vitimismo.

Todos o culpam – o caçam – por ele insistir em ser o que se tornou: um homem obeso e grotesco. Ou é essa a imagem que querem fazer dele? O filme tenta encontrar a humanidade e as razões desse homem por baixo de tanta gordura e arrependimento. Porém, não ajuda muito a maneira como o diretor filma e expõe as dores e disformidades desse corpo gordo diante de uma câmera invasiva.

Aronofsky parece querer, de fato, evidenciar o que há de mais animalesco em Charlie. Para piorar, o filme investe em uma série de embates, perfazendo um carnaval de injúrias, gritarias e dedos apontados que apenas elevam o filme ao posto de dramalhão caricato – o roteiro, baseado na peça teatral de Samuel D. Hunter, precisa criar algumas coincidências e armar certos embates para que as brigas e desentendimentos aflorem.

Em dado momento, Charlie recebe a visita de sua ex-mulher (interpretada por Samantha Morton) e ali há uma conversa minimamente mais madura. Mas são os embates com a filha adolescente que tornam esse tratamento mais repulsivo. Ellie tem raiva do pai, além de uma atitude implacável e fria diante de sua condição física. Seus comentários são agressivos e insensíveis, uma espécie de vingança pessoal por ele a ter abandonado.

Isso cria no filme um tipo de embate que quer ser mais chocante e expositivo do que necessariamente compreensivo sobre as cicatrizes de cada um – e o conflito com a filha é o maior desses desafios que Charlie tem de resolver para se manter em paz consigo mesmo de algum modo.

A Baleia se constrói como um embate psicologicamente desgastante, filmado com a mão pesada que Aronofsky costuma aplicar em seus filmes (lembremos de Cisne Negro ou Réquiem para um Sonho). Charlie luta contra o próprio corpo, mas principalmente contra a prisão que ele criou para si mesmo.

A Baleia (The Whale, EUA, 2022)
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Samuel D. Hunter

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 26/02/2023)

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