Padecer na periferia*
Não é fato desconhecido as muitas histórias de mulheres que tiveram seus filhos, maridos, irmãos e demais familiares desaparecidos, seja pelas mãos da força policial, seja pela perseguição histórica contra militantes políticos na época da Ditadura. O longa A Mãe, de Cristiano Burlan, narra uma dessas histórias, situada na periferia de São Paulo em que os conflitos com as forças policiais é algo corriqueiro no cotidiano dessas comunidades.
Depois de vencer prêmios importantes no Festival de Gramado (Direção para Burlan e Melhor Atriz para Marcélia Cartaxo), o filme encerrou a programação do Panorama Internacional Coisa de Cinema, em Salvador e em Cachoeira, e já se encontra em cartaz nas salas comerciais do Brasil. O encerramento na capital baiana contou com a presença do diretor, da atriz protagonista e de outros integrantes da equipe.
Na trama, Cartaxo interpreta uma mãe solo que mora apenas com o filho adolescente. Ela trabalha como vendedora ambulante e, certo dia, chega à casa e não encontra o rapaz que não volta nem mesmo no dia seguinte. Começa então uma busca em torno do paradeiro do garoto, envolto no silêncio das pessoas do bairro, o que torna a luta da mãe uma busca solitária e cruel.
“Eu conheço muito bem a periferia de São Paulo, lugar onde eu cresci. Sei que é gigante, mas posso dizer que houve muito endurecimento nas relações pessoais e uma grande resistência à presença policial. Por outro lado, há muitos grupos de teatro, de slam, de poesia, de literatura. São focos de resistência”, afirmou o diretor.
No início do filme, vemos que o filho (interpretado por Dunstin Farias) sai com um amigo para o colégio, mas mata aula para tentar participar de uma peneira de um time de futebol; chegam atrasados e não conseguem entrar. A partir daí, não saberemos o que aconteceu com o garoto até o fim do filme. Isso coloca o espectador na mesma posição dessa mãe que vai percebendo a gravidade da situação quando as informações parecem truncadas e pouco reveladoras.
O filme se passa na Zona Leste de São Paulo, onde as filmagens ocorreram, e contou com a participação da comunidade local. A dureza do filme, marcada pela trama do desaparecimento – e, consequentemente, da violência policial –, ganha nuances no espaço geográfico das pequenas casas e ruelas do bairro. “No final do ano, esse lugar é tomado por um rio [que aparece no filme] aparentemente bonito, mas que na verdade é a várzea do Tietê. Aquilo fede muito e os moradores passam três meses alagados ali”, complementou o diretor.
Polícia letal
A partir do momento em que a mãe busca mais informações sobre o filho, o caso vai ficando cada vez mais nebuloso, mas também se revelam as forças que estão por trás desse e de muitos outros desaparecimentos.
“Em 2006, depois dos ataques do PCC na cidade de São Paulo, o governador deu autorização para a polícia sair matando quem ela achava que estava envolvido. A gente sempre escuta isso quando se cresce na periferia: ‘morreu porque estava envolvido’. Mas o que é estar envolvido?”, questiona Burlan.
É a partir daí que A Mãe torna-se um filme de denúncia, muito consciente desse lugar de dedos apontados, ainda que tente compreender a situação que se forma ao redor daquele caso específico. A personagem de Cartaxo procura ajuda da vizinha, mãe do amigo de seu filho, que no dia seguinte viajou para o interior; e também no colégio onde o filho estudava, ajuda da polícia e até mesmo do comando do tráfico local, apenas para perceber que o caso é muito maior e mais complexo do que ela imaginava.
“A policia militar mata centenas de jovens na periferia de São Paulo, a maioria pretos e pobres. Muitos desses casos não foram resolvidos e muitos corpos não foram encontrados. Uma reação a isso é o encontro dessas mães que o filme vislumbra”, pontuou o diretor.
“Tem muitas mães invisíveis que passaram por esse processo e estão totalmente desassistidas, como é o caso da Maria, a minha personagem”, afirmou Cataxo. “Ela está desamparada pela vizinha, pela amiga, pelo amigo do filho, pelo tráfico, pela polícia, ou seja, pelo Estado como um todo. É uma coisa que vai crescendo tão profundamente que ela só pensa que acabou tudo para ela”.
Mães de maio
Com isso, o filme de Burlan resgata a força motriz que rege a vida dessas mulheres que, no papel de mães, fazem de tudo para o bem de seus filhos. Nesse sentido, o longa faz um cruzamento com a realidade a partir da inclusão do grupo das Mães de Maio na trama.
Inicialmente, a protagonista busca um desses grupos que existe de fato em São Paulo, organização que mobiliza mães, familiares e amigos das vítimas do que passou a se chamar Crimes de Maio de 2006 em São Paulo, embora atue para além desse caso. Helena Ignez interpreta uma dessas mulheres que administra o grupo e ajuda outras mães a buscarem respostas sobre o desaparecimento de seus filhos.
Mas o longa conta com a participação de Débora Silva, líder das Mães de Maio, em um momento em que ela conversa com Maria, numa espécie de partilha das dores que possuem a mesma razão de ser: a violência policial.
“Eu, a princípio, parto de um trabalho de pesquisa e depois do roteiro filme. Eu fui encontrar essas mães que vivenciaram essa dor, essa perda. A cena em que eu contraceno com a Débora Silva é onde a realidade se confronta com a ficção”, confidenciou Cartaxo sobre sua preparação para o papel.
Burlan lembrou ainda que Dunstin, intérprete do filho e que canta um rap em dado momento, é ele mesmo um rapper na vida real e criou as próprias canções que estão no filme. A dureza daquela realidade convive com a pulsão de vida através da arte, na medida em que a periferia tenta existir com dignidade, mesmo tendo tão poucas oportunidades.
O cineasta conclui: “Este filme é um recorte da periferia. Apesar do terrorismo do Estado e da letalidade da polícia, mesmo assim há muita poesia, muita resistência. Palavras que eu não costumo usar, como ‘afeto’ e ‘amorosidade’, acho que cabem bem para quem mora num lugar confortável, que não toma baculejo da polícia todo dia. Mas mesmo nesses lugares existem essas palavras bonitas de se falar, mas que na prática são difíceis de vivenciar”.
A Mãe (Brasil, 2022)
Direção: Cristiano Burlan
Roteiro: Cristiano Burlan e Ana Carolina Marinho
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (13/11/2022)