Mostra SP: All the Beauty and the Bloodshed

A primeira surpresa é ter como grande vencedor do Festival de Veneza esse documentário de denúncia social (claro que isso já aconteceu antes, mas não é mesmo comum que documentários estejam nessa posição). A segunda surpresa é que All the Beauty and the Bloodshed, logo nas suas primeiras imagens, pode se desvencilhar facilmente da pecha de “denuncista” (ou apenas disso) para se tornar uma bela reflexão sobre a arte de uma mulher e suas lutas atuais, além de uma dura constatação sobre o desamparo.

Nan Goldin é hoje uma artista e fotógrafa norte-americana. É também uma ativista que tomou para si – e criou um grupo informal de pessoas interessadas na mesma luta – a tarefa de denunciar e expor a família Sackler pela crise de opióides nos Estados Unidos – medicamentos utilizados para sanar dores fortes e que tem causado a dependência química de muitas pessoas, podendo levar à morte pelo seu uso excessivo e descontrolado.

Goldin ficou viciada depois de um tratamento médico, mas conseguiu se livrar da dependência. Sua experiência pessoal move sua luta na tentativa de escancarar um problema de saúde pública, enquanto muitas empresas lucram milhões de dólares em cima da comercialização desses remédios. A diretora norte-americana Laura Poitras acompanha os movimentos de Goldin e de seu grupo, ironicamente intitulado PAIN (Prescription Addiction Intervention Now ou Intervenção em Dependência de Prescrição Já), mas faz mais do que apenas mostrar suas reuniões, intervenções públicas e as pequenas vitórias conquistadas no ativismo.

Poitras resgata a trajetória de Goldin e seu trabalho no underground nova-iorquino dos anos 1970 e 1980 com muita vivacidade, através de rico material de arquivo. É uma aposta muito bem-vinda num filme sobre uma crise sanitária que levou tanta gente à morte, a outros causando sequelas físicas e mentais, a escolha de Poitras em destacar o lado pulsante da vida e obra de Goldin, ainda que pontuado por tristezas e derrotas pessoais. Aliás, a própria dependência dos opióides é sempre vista através do trabalho dos ativistas e de alguns poucos relatos que nunca exploram o sofrimento das vítimas.

E das muitas ironias da vida, a família Sackler – dona de um dos maiores impérios farmacêuticos, a Purdue Pharma, principal responsável pela produção e venda dos opióides nos Estados Unidos –, é também uma forte agente beneficente de museus e centros artísticos de grande porte – como o Louvre, o Guggenheim e outros –, espaços em que os trabalhos de Goldin já foram exibidos. Uma das lutas da ativista é justamente a retirada do nome Sackler de muitas salas de museus e inscrições em honra da família – é muito feliz também o acesso que o filme tem a uma sessão judicial (online) em que membros da poderosa família têm de participar e ouvir histórias de pessoas que perderam entes próximos por conta da dependência às drogas farmacêuticas. All the Beauty and the Bloodshed, aliás, é um dos poucos filmes em que vemos algumas vitórias dos ativistas na sua luta social, ainda que representada por pequenos gestos, em nada comparados com a morte e o vício de milhares de cidadãos pelo mundo.

Mas um dos lances mais criativos e mesmo inspiradores do filme diz respeito à história da irmã de Goldin que abre o filme e retorna no seu desfecho. A moça sofria por ter um comportamento retraído e foi diagnosticada erroneamente com transtornos mentais, tendo passado parte da sua vida em instituições psiquiátricas, sujeita a tratamentos indiscriminados. É uma história triste que não possui relação com a crise dos opióides, mas reforça uma tônica do filme: a necessidade de se olhar para os desamparados, os desajudados da sociedade.

Toda essa malha que o filme constrói, entre os embates sociais e as crises íntimas e individuais das pessoas, reforça a luta pela direito a um sistema de saúde pública de qualidade, com especial atenção para as questões mentais. O Leão de Ouro conquistado no Festival de Veneza, para além de reforçar a denúncia que o próprio filme compra, destaca também a composição narrativa da obra na sua correlação dual entre o macro e micro, entre a arte e doença, o ativismo e o oportunismo capitalista. A beleza crua em meio a derramamentos de sangue.

All the Beauty and the Bloodshed (EUA, 2022)
Direção: Laura Poitras

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