Sangue indígena derramado*
Quando Martin Scorsese lançou O Irlandês, em 2019, muitos disseram que um filme daqueles, um longa de 3h30 de duração, só poderia ter sido bancado pela Netflix. Sabe-se que o projeto foi rejeitado por muitas produtoras de cinema, sendo abraçada pela gigante do streaming. Mas Scorsese prova agora que é possível ter a mesma pretensão de produção dentro de um projeto “convencional” de estúdio já que seu mais novo filme, Assassinos da Lua das Flores, possui a mesma metragem.
E trata-se de mais um grande acerto desse cineasta que, aos 81 anos de idade, continua filmando com um vigor invejável, dominando como ninguém a narrativa clássica com que ele forjou uma carreira impressionante no cinema. Quem se aventurar pela longa duração do filme tem grandes chances de não sair decepcionado com a jornada de Ernest (Leonardo DiCaprio), que chega a Oklahoma no início dos anos 1920 para tentar ganhar a vida ao lado do tio (Robert De Niro).
Apesar de acompanhar o percurso de ascensão do jovem, o filme traz para o centro narrativo a história dos indígenas pertencentes à nação Osage, que naquele início de século começou a enriquecer por conta da descoberta de reservas de petróleo nas terras que passaram a ser destinadas a muitos deles – terrenos inicialmente impróprios para o cultivo. E sabemos que onde há petróleo, há sangue.
No entanto, muitos indígenas começam a ser mortos e perseguidos por conta dessa guinada financeira na América das oportunidades que não vê com bons olhos a prosperidade daqueles que não são homens brancos. Muitos desses indígenas são levados a se casar com pessoas brancas, especialmente as mulheres que passaram a ter independência financeira e social, uma forma de assumir, através da herança, a fortuna que pertencia aos nativos donos das terras.
Esse é o cenário que Ernest encontra ao chegar ao centro-oeste dos Estados Unidos. Logo, será astuciosamente pressionado pelo tio a buscar um relacionamento com a rica e pacata Mollie Kyle (Lily Gladstone), para quem trabalha como motorista.
O filme aborda a carência emocional e a solidão desses personagens que passaram a assumir um estilo de vida do homem branco, cosmopolita, nas cidades norte-americanas que começam a crescer naquele início de século. Não demora muito para se concretizar o romance improvável e o casamento inicialmente feliz de Ernest e Mollie, sob o olhar manipulador do tio.
Lobos e cordeiros
Scorsese molda a narrativa do filme envolvendo crimes e tramas policias – seu terreno seguro – a um episódio histórico bárbaro e nefasto para as nações indígenas, assumindo o lugar de reparação ou antes de denúncia contra o caso de matança pouco conhecido ou mesmo apagado da História até pouco tempo. O livro homônimo lançado pelo jornalista David Graan, em 2017, cumpriu esse papel e é o que sustenta a adaptação para o cinema.
O diretor sabe também que é uma ótima escolha mirar num personagem tão dúbio e em certa medida ingênuo como Ernest, moldado pelas circunstâncias, mas também um trapaceiro com ganas de enriquecer e espelhar seu tio. O personagem de DiCaprio é um caipira um tanto grosseiro e debochado, que se move pelas conveniências. Por outro lado, sua relação com Mollie ganha ares de afeição e carinho mútuo, o que torna tudo ainda mais ambíguo.
Mais ardiloso ainda é o personagem que De Niro defende com muita precisão e cinismo, sem exagerar seu papel de vilão. William Hale é um homem rico, dono de muitas terras, mas que vê seu império sendo transferido para mãos “vermelhas”, termo que ele usa pejorativamente para se referir aos indígenas. Ao mesmo tempo, no convívio social, ele trata todos com educação e até mesmo certo carinho, além de saber falar a língua osage – aliás, um ponto positivo para o filme é o trabalho com muitos diálogos em idioma nativo.
Reforça ainda mais o incrível trabalho de composição do trio de atores o fato de serem personagens históricos que de fato existiram naquele momento, peças chaves que o filme elenca aqui para representar o episódio também conhecido como uma “orgia de golpes e exploração”.
Sem mistérios
Apesar de descortinar uma história perversa do seu país, o filme investe em poucas subtramas suspeitas. Sabemos desde o princípio quais são os planos escusos do velho burguês, assim como as tramas de conchavos, os segredos guardados – especialmente de Ernerst para com Mollie –, as trapaças e traições que se constroem nessa malha de jogos de interesse.
Em Assassinos da Lua das Flores, tudo está às claras, mas é com atenção que nos dedicamos a acompanhar essa jornada de guinada e queda dos Osage – e daquele grupo em específico que, além de Mollie, vitima também suas irmãs que vivem uma situação parecida de exploração, talvez não com o mesmo grau de oportunismo sorrateiro como o dela.
Mais ainda, somos testemunhas da ganância e da prepotência daqueles que não querem abrir mão do poder e da influência política – Hale faz questão de informar ao sobrinho que ele é o braço direito do xerife naquele lugar onde muitos o chamam de “Rei”. E não se trata apenas de dinheiro, pois ele continua rico, mas é muito mais sobre não permitir que outros, diferentes dele, assumam uma posição de privilégio na sociedade.
Scorsese não trabalha com grandes mistérios escondidos – não do espectador, ao menos –, preferindo a transparência das ações dos personagens, o que ganham similaridade na própria clareza narrativa. Para um filme de 3h30, Assassinos da Lua das Flores solidifica o trabalho do diretor em pleno domínio da narrativa clássica, com a competência e sobriedade que o tema exige.
Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon, EUA, 2023)
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Eric Roth, David Grann e Martin Scorsese
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 22/10/2023)