Ascenção agridoce*
Quando foi lançado nos cinemas em outubro de 2021, o primeiro capítulo de Duna, capitaneado pelo franco-canadense Denis Villeneuve, enfrentava uma série de interrogações sobre o destino da franquia. O mundo estava começando a voltar às ruas com o avanço da vacinação contra a covid-19 e havia dúvidas se o filme conseguiria ser bem-sucedido nas bilheterias, único fator a garantir a continuidade dos filmes seguintes.
Mas o resultado foi muito positivo: o filme lucrou mais de 400 milhões de dólares e ainda teve uma ótima campanha no Oscar, conquistando seis estatuetas (incluindo a de Melhor Fotografia, além de ter sido indicado na categoria principal de Melhor Filme). Com isso, Villeneuve pode dormir em paz e planejar as continuações com todo suporte financeiro da produtora – ele já prepara o roteiro de um terceiro filme para fechar uma trilogia.
Duna: Parte Dois adapta a segunda metade do primeiro livro escrito pelo estadunidense Frank Herbert. Villeneuve – que sempre declarou interesse pessoal e paixão pelo material original – decidiu dividir o livro em dois filmes dada a complexidade deste universo mítico. Ali, as principais casas de poder disputam o controle do desértico planeta Arrakis, de onde se extrai a poderosa Especiaria, substância que dá aos indivíduos habilidades mentais e poderes de expansão da consciência.
A trama desta continuação começa exatamente onde o primeiro terminava. Depois da dissolução da Casa Atreides, com a morte do seu pai e alguns de seus aliados, o jovem Paul Atreides (Timothée Chalamet), junto com sua mãe (Rebecca Ferguson), conquista o apoio do povo do deserto, os Fremen (grupo dissidente que luta contra o Império), capitaneados por Stilgar (Javier Bardem) e onde Atreides conhece seu interesse amoroso, a destemida Chani (Zendaya).
Ainda assim, mãe e filho seguem vistos com desconfiança por alguns dos Fremen, diante do mito do grande salvador que muitos enxergam residir em Paul, inclusive o líder Stilgar – o próprio Paul chega a negar que ele seja o guerreiro prometido, apesar de ter visões do passado e do futuro que guiam o seu caminho de ascensão ao poder.
Por outro lado, sua mãe também começa um processo de subida de posto. Sacerdotisa pertencente à Bene Gesserit – ordem de mulheres com habilidades mágicas e grande poder de influência no Império –, Jessica passa a ser treinada através da expansão dos seus poderes para se tornar uma Reverenda Madre, título superior da classe que ela representa.
Messianismo político
Se a ideia de um líder salvador, uma espécie de messias prometido segundo as lendas e crenças do povo do deserto, já estava presente no primeiro filme, aqui isso ganha destaque principal. Duna: Parte Dois, de modo geral, pode ser visto como a história de ascensão de Paul Atreides, ainda que isso não seja bem aceito por todos e haja algo de agridoce na mudança de postura que ele assume nesse processo.
O próprio personagem enfrenta dúvidas internas sobre sua condição de herói, mas é levado cada vez mais a defender uma posição de destaque e liderança diante dos ataques que passam a sofrer. O cerco contra eles continua pesado por parte do Barão Hakonnen (Stellan Skarsgård), responsável pela aniquilação da Casa Atreides, em uma jogada de traição juntamente com o Imperador (Christopher Walken).
Eles colocam no encalço dos Fremen, especialmente de Paul, o psicótico lutador Feyd-Rautha (Austin Butler), enquanto a própria filha do Imperador, a princesa Irulan (Florence Pugh) surge em cena para também articular suas jogadas em prol do pai e da permanência do poderio de sua família.
O filme expande, portanto, suas camadas políticas e religiosas, colocando em confronto os vários pilares daquela sociedade, em meio aos toques de fantasia – curiosamente, lembra muito o tipo de articulação narrativa vista em Game of Thrones, com o mesmo tipo de seriedade e maturidade, que se perdeu um pouco com as tramas juvenis de franquias como Guerra nas Estrelas e afins. Basta lembrar que o livro Duna surgiu muito antes de todos esses e serviu como influência para as franquias épicas de fantasia que vieram a seguir.
Épico concentrado
Não deixa de ser louvável que Villeneuve consiga resgatar uma espécie de trama fundadora dos épicos de fantasia, com o verniz técnico dos blockbusters contemporâneos, mas mantendo o sentido e o legado original do livro. Muito se comenta que a trama tem momentos de lentidão e diálogos em demasia, isso porque Villeneuve preserva o cerne do material original, nunca apressando o seus desdobramentos.
Mas não é só nas disputas políticas e religiosas que Duna: Parte Dois se concentra. Como épico de fantasia, essa segunda parte investe um pouco mais nas batalhas e nos confrontos físico, mantendo o mesmo nível de qualidade técnica do longa anterior. Aqui os perigos não veem mais dos gigantescos vermes do deserto – que se tornaram marca registrada da franquia –, uma vez que o próprio Paul passa a domá-los, e sim dos embates com as forças do Império que se tornam cada vez mais intensas e vão dar a tônica dos confrontos a partir de então.
É certo que na primeira metade do filme tais embates se mostram um tanto repetitivos, já que a trama precisa de um tempo para apresentar seus novos personagens e dar substância aos embates políticos e religiosos que se desenham. Algo precisa preencher esse momentos e é por isso que as cenas épicas não aparecem aqui como ação desenfreada.
É como se fosse um épico concentrado, nem muito deslumbrado pelas possibilidades de criar momentos de tirar o fôlego – embora eles existam, ainda mais com a potência do som de uma boa sala de cinema – e com os efeitos especiais de primeira, e nem cansativo a ponto de tornar a trama desinteressante. Assim como na primeira parte, Villeneuve encontra um meio termo para equilibrar as duas coisas e construir um filme coeso e grandioso, sem ter que ceder às exigências atuais de exagerar na ação desmedida.
Duna: Parte Dois (Dune: Part Two, EUA/Canadá, 2024)
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Denis Villeneuve, Jon Spaihts e Frank Herbert
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 03/03/2024)