Ferrari

Obstinado pela velocidade*

Há 20 anos que o cineasta norte-americano Michael Mann sonhava em levar para as telas a cinebiografia de Enzo Ferrari, ícone do automobilismo mundial, fundador da fábrica de automóveis esportivos que tornou o seu nome uma marca de sucesso e poder conhecida no mundo todo.

O projeto já passou por várias modificações, inclusive de elenco, até chegar ao formato que o cineasta apresenta agora, depois de ter estreado no último Festival de Veneza. Adam Driver acabou encarnando Enzo Ferrari dessa vez – esse é o segundo magnata italiano que o ator interpreta nos últimos anos, depois de viver Mauricio Gucci em Casa Gucci, de Ridley Scott. O filme de Mann, no entanto, é muito mais feliz em estabelecer os dilemas morais e familiares do seu protagonista.

O grande empresário italiano criou também a Scuderia Ferrari, equipe de corrida que participa das principais competições de esportes a motor – estas que assumiriam um formato mais profissional com o passar do tempo, como a Fórmula 1. Em Ferrari, o desejo de permanecer sendo um ícone vitorioso nas corridas eleva o ego do grande empresário.

É a marca da obstinação o que Mann reproduz no seu filme: Ferrari quer conquistar mais vitórias nas perigosas corridas que juntavam os principais fabricantes de carro do mundo. Apesar de passar por uma fase bem ruim financeiramente, não era apenas pelo dinheiro que ele fazia isso, mas para provar o quanto seus veículos eram os mais velozes naquele momento.

O filme se passa especificamente no ano de 1957 – não se trata, portanto, de uma cinebiografia convencional que tenta dar conta de toda a vida do magnata – quando ele pretendia vencer, com seus carros e pilotos, a corrida da Mille Miglia – competição de longa distância efetuada pelas estradas da Itália. Após um grave acidente ocorrido com um de seus principais corredores, surge a oportunidade para o piloto Alfonso de Portago (interpretado pelo brasileiro Gabriel Leone) entrar no time e mostrar sua habilidade na direção.

Mann é um cineasta que filma como ninguém a obstinação de seus personagens, movidos a adrenalina e perigo – vide filmes como Colateral, Miami Vice e o clássico de ação Fogo Contra Fogo. Com Ali, deu vida aos dilemas do boxeador Muhammad Ali, filme que mais se aproxima de Ferrari pelas vias da cinebiografia, escolhendo um recorte temporal muito preciso capaz de revelar certas facetas de seus personagens.

Família cindida

Não era apenas nos negócios que as coisas iam de mal a pior para Enzo; sua vida familiar também estava em colapso, isso quando as duas coisas não se entrelaçavam. O magnata precisa lidar com a amargura da sua esposa Laura, vivida por uma incrível Penélope Cruz, que trata o marido e todos ao redor com mão de ferro, inclusive se mostrando muito atinada aos assuntos financeiros do esposo, tomando com muita determinação sua parte nos negócios do que ainda chama de família.

Além disso, ele esconde de todos o relacionamento com uma segunda mulher (vivida por Shailene Woodley), com quem já tem um filho – o pequeno Piero, que viria a ser o herdeiro da fortuna do pai e futuro vice-diretor da Ferrari. A ideia da paternidade é um ponto importante aqui, uma vez que Laura e Enzo enfrentam o luto pelo filho de 26 anos do casal que havia morrido no ano anterior por problemas de saúde, o que agravou o distanciamento entre eles e a crise matrimonial.

É portanto uma espécie de terremoto pessoal, vindo em pequenas ondas, mas sempre crescente, que incide na vida de Enzo em um momento em que as corridas esportivas ainda são uma obsessão dele – também podem ser lidas como uma válvula de escape diante dos descaminhos de sua vida.

A entrada em cena de Alfonso de Portago acende as esperanças de novas vitórias para a Ferrari. Não deixa de ser outra figura filial que passa a fazer parte do círculo de relações que Enzo precisa mediar e direcionar, colocando em evidência a própria marca da Ferrari na mídia, uma vez que Portago vivia um romance com uma famosa atriz da época, o que chamava a atenção do jornalismo de celebridades.

Máscaras

Diante da aparente normalidade e autocontrole que a pessoa de Enzo Ferrari transparece, com sua pose elegante, acrescido do uso constante de óculos escuros, o personagem parece pouco se abalar pelas inconstâncias da sua vida de então. Conhecemos suas angústias pelos fatos, mas não pelo descontrole emocional que ele poderia demonstrar, pois ele nunca chega a esse ponto.

Mann também segue esse mesmo princípio na condução do filme: sem grandes arroubos dramáticos ou exageros cênicos – exceto nas brigas de Enzo com a esposa, quando o sangue latino de ambos falam mais alto –, Ferrari está mais interessado em revelar as consequências pela obstinação de Enzo do que tentar explicá-las. Mann prefere o caminho da sisudez com o qual o protagonista busca sustentar o esforço de parecer senhor de si e inabalável, como se quisesse provar a si mesmo sua própria força diante das intempéries do mundo.

Em termos de composição narrativa, Ferrari enfrenta alguns entraves, como o uso de maquiagem e próteses pouco convincentes nos atores ou a própria escalação do elenco de não italianos para viverem personagens latinos típicos – algo que não acontecia com Napoleão, para citar um exemplo recente de filme baseado na vida de uma personalidade real, apesar do filme de Ridley Scott ser repleto de outros problemas narrativos.

Ainda assim, Mann contorna essas “dificuldades” com sua habilidade de encenador clássico, conferindo fluidez a esse labirinto de emoções e percalços que Enzo enfrenta. Ferrari é o típico filme sobre o homem rico e poderoso, encurralado pelas circunstâncias da vida pessoal e profissional, também cobrado pelas suas próprias escolhas. Mas, principalmente neste caso, governado por suas ambições e obstinações, mesmo que isso coloque em risco a vida de algumas pessoas, próximas a ele ou não.

Ferrari (EUA/Reino Unido/Itália/China, 2023)
Direção: Michael Mann
Roteiro: Troy Kennedy Martin e Brock Yates

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 25/02/2024)

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