Mostra SP: Afire

“Há algo errado”. Essa é a primeira frase que ouvimos em Afire, quando Leon e Felix estão dirigindo em direção à casa de praia da mãe do segundo, onde eles pretendem passar um tempo trabalhando nos seus respectivos projetos artísticos: Felix precisa criar um portfólio fotográfico para a universidade e Leon está terminando de escrever seu segundo romance. O carro deles quebra e precisam seguir o restante do caminho a pé, cercados pela floresta nos arredores da praia de uma pequena vila do interior alemão.

Se há algo de errado ali, o filme irá nos mostrar que isso se refere menos ao defeito no carro e mais evidentemente a Leon (vivido por Thomas Schubert). O diretor alemão Christian Petzold tem criado nos últimos anos dramas sentimentais que escondem nas entrelinhas muito mais do que transparecem à primeira vista, qualidade presente aqui em Afire, o que o torna mais um filme especial na consistente carreira que o cineasta vem forjando nos últimos anos.

É um curioso e rico estudo de personagem o que o filme nos oferece, pois as relações de Leon naquele microcosmo idílico se contrapõem ao estado de apreensão e certo nervosismo do jovem escritor que espera, ansiosamente, o feedback de seu editor sobre seu novo livro. Ele não consegue relaxar naquele lugar, enquanto Felix (Langston Uibel) lida muito melhor com as pressões artísticas. Somado a isso, eles precisam conviver com Nadja (Paula Beer, luminosa como sempre), convidada da mãe de Felix, que passa um tempo na casa, sem que eles tivessem sido avisados.

Sua presença vai se consolidando paulatinamente na trama, à medida em que Leon trava contato e maior proximidade com ela. Mais detalhe sobre Nadja, sua ocupação e personalidade, vão surgindo aos poucos, ao mesmo tempo em que cresce no escritor certa fascinação sobre a mulher, cuja vida sexual é retratada com muito desprendimento – ela recebe no seu quarto um amante ocasional, o salva-vidas Devid (Enno Trebs), que passa a circular pela casa.

Muito claramente, Leon é um personagem destoante no grupo. Apreensivo e arisco, um tanto prepotente e carrancudo, não possui bom humor e está sempre pensando no trabalho e em si mesmo – no fundo, um perfil de gente imatura, que pensa ser visto de modo oposto. É o tipo de personagem ao qual é difícil aderir e criar empatia – algo que lembra ao protagonista de Passagens, de Ira Sachs, para ficar num exemplo recente – mas que aqui ganha um tratamento mais consistente na sua jornada de desnudamento porque os contrapontos com os demais personagens são muito bem pontuados pela trama. As vicissitudes de Leon transparecem muito facilmente, mas é nelas que o filme mira a partir de um caminho de autodescoberta – talvez muito malsucedida, mas ainda assim evidenciada.

Petzold tem mostrado maestria na maneira como desenha personagens que vão revelando suas camadas com uma naturalidade gritante, ao sabor da narrativa. Revelam suas fraquezas também, e todos ali vão jogar na cara de Leon seus defeitos, mesmo que ele não os perceba. É com muita segurança e uma encenação sem firulas que o diretor segue pontuando de belezas e sensibilidade a narrativa, mesmo ao redor desse personagem tão falho.

Um desses momentos de iluminação – há alguns no decorrer do filme – se dá durante uma refeição em que Nadja é incitada a declamar um poema alemão que estuda. No texto, uma princesa e um escravo se encontram, e ele revela que na tribo de onde vem, aqueles que amam, morrem. Há muitas implicações aí – sociais e históricas, certamente –, mas parece interessar a Petzold a carga simbólica do texto, que pode ser uma chave de compreensão para o filme. Todo o arco que envolve a trajetória de Leon se resume ao medo de querer amar, em sentido muito amplo, essa chama adormecida que ele insiste em manter apagada. A tragédia encontra os personagens no terço final do filme, e é o golpe mais duro que não estávamos esperando – assim como não se espera e não se recusa o amor.

Afire (Roter Himmel, Alemanha, 2023)
Direção: Christian Petzold
Roteiro: Christian Petzold

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