Mostra SP: Até Amanhã

Fereshteh (Sadaf Asgari) é mãe de um bebê de apenas dois meses de idade e vai receber a visita dos pais em sua casa. Tudo estaria bem se não fossem pequenos detalhes. E se não estivéssemos falando de uma sociedade tão rígida e moralista como é a do Irã. A complicação é que ela é mãe solteira e os pais dela não sabem sequer da existência da criança.

Com a visita inesperada – os pais moram no interior do país, o que sugere um pensamento ainda mais conservador –, Fereshteh vai lutar contra o relógio para conseguir alguém que fique com a criança por uma noite (“só até amanhã”, daí o título do filme), tempo que eles prometem ficar na casa da filha. É preciso que o/a “guardião/ã” não questione muito os motivos para que ela deixe a criança aos cuidados de terceiros porque ela não tem como omitir sua situação.

Até Amanhã é dirigido pelo jovem cineasta Ali Asgari, cujo trabalho se enquadra num tipo muito comum de cinema feito hoje no Irã: o do dilema moral, aquele que coloca seus personagens em situações limite, fazendo-os esbarrar nos preceitos éticos e religiosos de uma sociedade enraizada nos preceitos de uma tradição arcaica. Esse é o segundo longa-metragem do realizador, mas ele tem uma fértil carreira no curta-metragem que serviu como exercício para esse tipo de história de tom realista e que lida com tensões cotidianas, marcada por situações que encurralam seus personagens na moralidade social.

É o mesmo tipo de história que consagrou um cineasta como Asghar Farhadi (em filmes como o oscarizado A Separação e o mais recente Um Herói), nome reconhecido do cinema iraniano atual. Mas a diferença entre os dois é que enquanto Farhadi cria um emaranhado de situações que se desdobram durante todo o filme, criando reviravoltas que por vezes surpreendem o espectador (nem sempre positivamente), Asgari e muito mais direto e preciso na sua abordagem. Com ele, o jogo está claro desde o início.

Aqui, sabemos exatamente o que preocupa a protagonista e o que move as várias recusas que ela recebe no decorrer da sua empreitada. E temos clareza também de por que ela deve esconder a criança – não que isto esteja necessariamente certo, em termos morais. Asgari, aliás, não julga seus personagens, apenas observa os atos e atitudes que eles tomam na tentativa de manter uma vida digna. É certo que Fereshteh não conseguiria sustentar seu segredo para a família por muito tempo, mas esse é um problema dela e não do filme.

Esta é também uma trama ambientando numa Teerã cosmopolita, cidade grande que garante um pouco da privacidade as pessoas, muito embora os alicerces morais continuem caindo com peso sobre as pessoas, em especial sobre as mulheres – no prédio em que Fereshteh mora, suas vizinhas a tratam entre a ternura e a desconfiança. Ser uma mulher solteira e, ainda por cima, ter uma filha fora do casamento, e nem sequer ser comprometida com o pai da criança, não é mesmo algo visto com bons olhos.

Asgari utiliza muito bem essa dinâmica da vida urbana porque a personagem, junto com a sua melhor – e talvez única – amiga, Atefeh (Ghazal Shojaei), vai de casa em casa em busca de alguém que possa lhe fazer o favor de cuidar da filha por uma noite. O filme lida, portanto, com os dilemas não só das duas mulheres, mas de cada um com quem elas cruzam – inclusive com o pai da criança.

É evidente que não demora muito para que a estrutura de bola de neve se instaure na trama e as coisas ganhem proporções cada vez mais graves e complexas, numa rede de desentendimentos e entraves que se desenrolam por todo o filme, até o seu desfecho. Lembra um pouco a dinâmica narrativa do cinema dos irmãos Dardenne, sempre perseguindo seus personagens pelos caminhos tortuosos que eles empreendem, mas sem encurralá-los. Aliás, Asgari foge aqui dos finais em aberto e consegue ser ainda muito determinado na conclusão de uma história que pareceria um beco sem saída, ainda que as consequências pelos atos estejam apenas começando.

Até Amanhã (Ta Farda, Irã/França/Catar, 2022)
Direção: Ali Asgari
Roteiro: Ali Asgari e Alireza Khatami

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