Mostra Tiradentes: Quando Aqui

A operação de embaralhar ficção e uma realidade muito pessoal com a qual André Novais Oliveira vem construindo sua incrível carreira até aqui foi capaz de forjar uma maneira muito rica e poética de elaborar sua marca autoral no cenário do cinema contemporâneo brasileiro – não necessariamente alcançando um outro patamar de realização, apenas operando em uma outra chave, uma muito particular. Isso faz com que muitos dos seus filmes sejam celebrados pela capacidade de narrar a partir de sua própria vivência, experiências e afetos que colocam o cotidiano de sua própria família no centro desses filmes.

Pouco se fala, no entanto, sobre as marcas ficcionais e inventivas que se fazem presentes na maioria desses filmes, na medida em que a poética desse cotidiano serve de força criativa para as histórias que ele quer contar, ainda que partam de uma matriz muito íntima.

No entanto, existe um conjunto de filmes em que a pessoalidade do realizador se revela de modo muito claro e incontornável pela própria natureza dos filmes – são seus últimos trabalhos, nomeadamente os curtas Rua Ataléia e Nossa Mãe Era Atriz. Dessa leva de filmes faz parte Quando Aqui, esse novíssimo trabalho que André apresentou na abertura da Mostra Tiradentes, ao lado de outro filme, Roubar um Plano, este em codireção com Lincoln Péricles (bem menos nessa pegada autorreferencial).

No primeiro filme, o cineasta revista a casa da família, onde seu pai mora atualmente, o lugar onde a família se estabeleceu, se formou e se baseou como referência do que significa um “lar” na vida de alguém. Ela elabora um jogo aparentemente muito simples para ampliar, no tempo e no espaço, projeções de passado e futuro possíveis de se construir a partir da vivência naquele espaço, seja dos membros da família ou de outros indivíduos que, muito antes ou depois, circularam e se apossaram daquele lugar.

Há aí uma intervenção ficcional que se dá pelas beiras, a partir da incorporação de indivíduos e experiências que parecem estranhas àquele núcleo familiar que já conhecemos de outros filmes do realizador. Mas são muito mais fortes os pontos de encontro que ele estabelece com a própria família e, inicialmente, com o espaço físico da casa. Mesmo que ela esteja ligada à produção de cinema – a casa foi cenário para alguns filmes, como Quintal, citado “textualmente” no filme – ela continua sendo o lar do realizador que fez do íntimo familiar tema e ponto de partida dos seus filmes (curiosamente, essa reflexão reverbera no mesmo gesto narrativo visto na primeira parte de Retratos Fantasmas já que a casa de Kléber Mendonça Filho virou também um lar de cinema).

Quando, a partir daquele lugar físico, o filme insere a expansão temporal, aí sim as coisas vão se ampliando e as fronteiras de registro documental e ficcional friccionam-se a tal ponto que não é o caso de tentar distingui-las mais (como, em verdade, em nenhum caso parece ser muito frutífero), antes perceber o que tal operação potencializa no discurso do filme. E neste caso, o que ela amplia na própria cinematografia de André Novais.

De cara, é possível dizer que Quando Aqui promove um desajuste espaço-temporal para afirmar a força do gesto cotidiano como catalizador das vivências, colocando isso em primeiro plano, abrindo ainda mais brechas para que o espectador complete, pela experiência do ver, a experiência do ser, do habitar e do afetar, este último como ação direta do afeto, palavra que não poderia ser mais sinônimo da incrível obra que o cineasta mineiro vem forjado desde sempre.

Quando Aqui (Brasil, 2024)
Direção: André Novais Oliveira
Roteiro: Esther az, Clara da Matta e André Novais Oliveira

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos