O Rio do Desejo / Conversa com Sérgio Machado e Milton Hatoum

Afluentes de uma paixão*

Dalberto (Daniel de Oliveira) é um policia que vive em uma cidade ribeirinha às margens do Rio Amazonas. Ele resolve deixar a polícia e seguir o sonho de viver do seu barco de pesca. Nesse meio tempo, conhece e apaixona-se pela bela Anaíra (Sophie Charlotte), com quem logo vai morar junto. A paixão dos dois é mútua, mas ele não contava que a mulher iria chamar a atenção dos seus dois irmãos, o mais recatado Dalmo (Rômulo Braga) e o mais jovem, Armando (Gabriel Leone).

Essa é a trama de O Rio do Desejo, novo filme do cineasta baiano Sérgio Machado, lançado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo que findou há poucos dias. O filme parte agora para a mostra competitiva do Festival Black Night, em Tallinn, na Estônia.

Para o cineasta que já havia feita Cidade Baixa (2005), sobre um triângulo amoroso na periferia de Salvador, a ideia de um quarteto de paixões não é algo tão distante de administrar. Machado, no entanto, está longe da sua terra natal, em meio às belas e misteriosas paisagens amazonenses.

Diferente do primeiro longa ficcional do cineasta, O Rio do Desejo possui uma matriz literária clara: o filme é adaptado de um conto do escritor amazonense Milton Hatoum (“O Adeus do Comandante”, que compõe o seu livro de contos A Cidade Ilhada). E o filme possui uma atmosfera muito característica das obras de Hatoum ao preservar certos mistérios regionais, mas sem “exotizar” a região, antes fazendo um retrato muito palpável e realista do lugar.

“Tem algo para mim na obra do Milton e que eu sempre tinha em mente quando eu estava filmando, que era a ideia de algo além do aparente, daquela história, da briga dos irmãos. Tem algo acontecendo por trás daquela trama que é meio invisível. São as forças dos antepassados, como se o passado de alguma maneira ditasse a narrativa”, afirmou Machado durante a conferência sobre o filme dentro do II Encontro de Ideias, promovido pela Mostra.

Este painel foi construído dentro do evento para tratar de um caso peculiar envolvendo a produção de O Rio do Desejo. Milton Hatoum participou ativamente da escrita do roteiro, adaptando o seu próprio conto (trabalho feito em parceria com Machado e também George Walker Torres e Maria Camargo). Ao retomar esse material, acabou escrevendo e desenvolvendo outras histórias o redor dos personagens e agora está a caminho de publicar um romance derivado do filme.

Adaptações

Este é um caso muito peculiar de um conto que virou filme e que agora vai se tornar um romance ou uma novela. O cineasta e o escritor participaram do painel e conversaram com o público sobre os desafios desse tipo de adaptação e quais caminhos cada um trilhou no seu trabalho.

Sobre a transposição do conto literário para o cinema, Hatoum foi categórico: “A fidelidade não existe, nem na adaptação de linguagem e nem na tradução literária. Essa história de dizer que traduzir é trair não é verdade. É o contrário. Como disse Walter Benjamin, traduzir é encontrar uma confluência de línguas diferentes que se tornam, no fim, aparentadas por um conteúdo comum”.

Se Rio do Desejo possui uma matriz literária tão forte, sua transposição para o cinema carece de uma elaboração que também seja pensada para o formato audiovisual. “Uma coisa que pra mim está muito presente n filme são os silêncios. Queria que fosse um filme de poucos diálogos e muito silêncio para dar margens a essa coisa do que não é aparente”, pontua Machado sobre o conceito aplicado à obra cinematográfica.

O diretor falou também sobre a presença dos fantasmas do passado que são sentidos no filme, mas nunca concretizados. Isso porque os três irmãos, vez ou outra, relembram a mãe que largou o pai para fugir com outro homem, abandonando a família. E também sobre a morte um pouco mais recente do próprio pai. Tais ausências se sentem na maneira como cada um deles reage à ideia da constituição de uma nova família que se configura com a chegada de Anaíra na vida deles.

“Nós nunca vemos os fantasmas, eles mal são citados na trama, mas de alguma maneira eles comandam a narrativa. Tem uma coisa do destino inexorável dos personagens que é muito latente. O filme é uma tragédia grega na Amazônia. Os personagens, por mais que tentam, não são senhores de seu destino, eles são conduzidos por forças maiores que eles”, complementa o diretor.

Desejos introspectivos

Sérgio Machado falou também sobre a aventura que foi filmar na Amazônia, à beira do grande rio, com uma equipe reduzida e baixo orçamento (o longa foi rodado na cidade de Itacoatiara, a 270 km de Manaus). E de como a população local abraçou o projeto. As belezas naturais são evidentes na obra, mas há algo mais importante do que os belos cenários amazônicos.

Sobre isso, Hatoum observa: “Sérgio acertou muito no tom dramático e na interioridade dos personagens. O Amazonas está ali, tem cenas belíssimas da região, mas há um foco maior na interioridade dos três irmãos, alucinados por essa paixão de formas muito diferentes, no modo de ser de cada um”.

É nesse sentido que podemos falar do tom de tragédia grega que o filme carrega. A própria ideia dessa paixão compartilhada entre os três irmãos é algo que vai sendo construído muito paulatinamente na trama. Daniel de Oliveira e Sophie Charlotte, que são casados na vida real, possuem uma química indiscutível na tela, tanto em termos de pulsão sexual como no retrato de casal apaixonado.

Rômulo Braga talvez seja o ator mais experiente ali, e seu personagem recatado, aos poucos, vai se aproximando da cunhada – especialmente depois que seu irmão precisa fazer uma longa viagem em um trabalho clandestino –, embora com maior consciência do erro que significa aquela aproximação. O irmão mais jovem, muitíssimo bem encarnado por Gabriel Leone, é o que tem mais desenvoltura e certa picardia juvenil, sendo mais naturalmente atraído pelos encantos da moça. Todos eles emaranhados pelas redes da paixão, sem que o filme julgue suas atitudes. Apenas entende que os desejos, assim como o curso de um rio, não se interrompe com facilidade.

O Rio do Desejo (Brasil, 2022)
Direção: Sérgio Machado
Roteiro: Sério Machado, Milton Hatoum e Maria Camargo

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 06/11/2022)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos