Olhar de Cinema: Rewind & Play

Em 1969, o pianista e compositor de jazz Thelonious Monk finalizava uma turnê na Europa quando foi convidado a participar de um programa de televisão em Paris. Rewind & Play é o registro das gravações desse programa, daquilo que foi salvo, ordenado como um desastre total, não por culpa do artista, mas antes pela inoperância da equipe do programa, em especial do apresentador que interage – ou assim ele tenta – com Monk, escancarando um total descompasso entre eles – entre um artista negro norte-americano e uma pretensa intelligentsia europeia/francesa.

Trata-se de um filme de montagem por excelência. O cineasta franco-senegalês Alain Gomis, de posse desse material bruto, rearranja as imagens a fim de apresentar nuances que nunca seriam apontadas dentro de um programa televisivo. Na verdade, é do olhar que Gomis lança sobre o arquivo e das possibilidades de seu aproveitamento como matéria-prima do cinema que faz Rewind & Play ser um estudo exemplar do poder discursivo da imagem e do som. As maiores interferências que o diretor faz estão no nível da supressão ou não do som e da própria edição do filme. Não há falas em off, explicações ou entrevistas – salvos as informações básicas do letreiro a contextualizar a situação.

Se o filme resgata registros da chegada de Monk no aeroporto, trajetos de carro e demais interações, é nos estúdios do programa de TV, diante do piano e do entrevistador, que o filme cria o seu real embate: a luta do artista que quer mostrar o que sabe fazer de melhor contra as vicissitudes de uma estrutura televisiva fechada, mais as perguntas mecânicas do apresentador a forçar a barra da afinidade entre eles. “Tudo o que eu faço é tocar”, diz em certo momento o jazzista, diante das insistências do apresentar em perguntar futilidades das quais Monk não está nem um pouco disposto a falar.

Por sua vez, tudo o que Gomis faz é trabalhar em torno do arquivo, quase revirá-lo do avesso, e por isso o título do filme não poderia ser mais pertinente. Assim como o apresentador repete e ensaia as mesmas perguntas diante da impassividade de Monk, o filme destaca a reiteração, quase como se rebobinasse a fita, insistisse na persistência que revela o desacordo e o disparate da situação – em alguns momentos chega a ser engraçado o ridículo de toda aquela encenação.

Enquanto isso, Monk se concentra o mais que pode em tocar ao piano – Gomis, aliás, faz jus ao gesto do artista e dedica uns bons momentos apenas observando a virtuosidade do músico diante do instrumento. O diretor também destaca elementos da cena, usando zoom ou suprimindo o som apenas para que possamos observar mais atentamente a imagem a revelar o suor caudaloso que escorre pelo rosto de Monk, os movimentos das suas mãos, o desejo de sair dali o mais depressa possível estampado em seus olhos, o desconforto do francês.

O que Gomis faz aqui é voltar a imagem. Mas é também voltar à imagem: exercício de garimpeiro que não apenas encontra o arquivo, mas ainda o disseca, reconfigura-o, a fim de dar forma a algo novo e mais potente, mesmo que pela via da contrariedade. O gesto aqui é o de voltar e olhar, enquanto Thelonious Monk apenas toca.

Rewind & Play (França/Alemanha, 2022)
Direção: Alain Gomis

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