Olhar de Cinema: Uma Noite sem Saber Nada

O longa indiano Uma Noite sem Saber Nada é um belo exemplar do que se pode chamar de filme de pretexto. Há uma trama ficcional criada a partir de um dispositivo muito conhecido no cinema de tom confessional (geralmente documentários, mas não apenas): a troca de cartas e mensagens entre duas pessoas que estão distantes. Pois aqui este é um esforço narrativo que serve para um outro propósito: documentar os movimentos estudantis contra os descasos políticos e certo espírito fascista e opressor que ronda as coisas na Índia da atualidade.

O foco do filme recai mais precisamente sobre os estudantes de cinema de uma universidade indiana, que pode muito bem ser a escola em que estudou (ou ainda estuda) a diretora Payal Kapadia. Não se sabe ao certo a fidelidade dessa informação, mas é bem nítido que há um intuito de colocar em questão a realidade dos embates políticos em que ela e seus colegas estão inseridos (seja direta ou indiretamente). Conflitos estes que vão evoluindo para embates violentos e opressivos que foram se espalhando por centros de ensino superior na Índia nos últimos anos.

Mas o que desencadeia a narrativa do filme são as mensagens de uma garota para seu amado distante, eles que, por algum motivo, foram impedidos de estarem juntos, especialmente pela desaprovação da família com o relacionamento. O letreiro inicial do filme dá conta de informar que uma caixa com cartas de uma tal L. foram deixas na entrada da universidade. O filme passa, então, a revelar o conteúdo dessas cartas que, de início, revelam a separação dos amantes para, aos poucos, desenhar os embates políticos que veremos documentados no decorrer do longa. A estratégia ficcional é também uma maneira de camuflar certas perspectivas da própria diretora que parecem se entrever nas falas atribuídas a L., enquanto seu namorado pouco fala no filme.

Kapadia tenta construir um universo híbrido: ao mesmo tempo que parece adentrar a memória (e os sonhos) dessa personagem, partindo de seus sentimentos, desejos e anseios, o filme tem também os pés no chão e observa diretamente a realidade política local, não apenas no território da educação, mas da sociedade indiana como um todo. Se o filme começa dando a entender que vai enveredar pelo melodrama – aliás, umas das bases mais fortes do cinema clássico indiano – e logo ele muda de foco, não é porque se transforma e o caso dos amantes torna-se meramente superficial; mas, antes, é a gerência do filme que ronda por caminhos pouco convencionais até chegar aonde quer.

O filme tenta equilibrar tais registros, usando do artifício da narração em voz off coberto por imagens de filmes antigos e cenas prosaicas no campus universitário antes de alcançar seu propósito maior. (E um parênteses aqui para pontuar o quão curioso é pensar que os estudantes de cinema na Índia não dançam apenas ao som de música, mas ao som de algum filme musical, outra das paixões dos indianos, tal como a cena que abre o longa). Esse vigor da juventude aparece no filme não apenas pontuando a energia juvenil para celebrar, mas também a que se dispõe diretamente à luta política.

É quando o filme chega a seu ponto central: os protestos e greves estudantis como resposta às denúncias em torno dos cargos administrativos universitários assumidos por pessoas ligadas a um passado de opressão fascista na Índia – e o receio de retorno dos tempos sombrios, mal desse nosso início de século.

A partir do momento que esta realidade abertamente política toma o filme de assalto, e cenas documentais são usadas para ilustrar esse momento, Uma Noite sem Saber Nada vai mudando de atmosfera e aquilo que parecia bem mais subjetivo e mediado pelos meandros da memória passa a ter uma correspondência mais concreta com o presente. Não que esse tipo de registro não seja também uma forma de reconstruir uma memória agora coletiva – em certo ponto o filme faz uma digressão para citar casos recentes de violência (estupros coletivos, casos de linchamento, a história de uma jornalista assassinada) que o filme anuncia como um tipo de “memória social” –, mas ele ganha uma outra urgência a partir de então.

Até mesmo a narração de L. cede lugar ao registro realista que fala por si só, enquanto a trama segue o crescendo dos embates entre estudantes e forças policiais. A diretora guarda mais para o fim uma cena chocante, de uma câmera de vigilância, que revela o momento em que supostos policias, com os rostos cobertos, invadem o que parece ser uma sala dentro da universidade e passam a agredir fisicamente os diversos alunos que se escondiam ali. É o tipo de cena coringa ao redor do qual o filme se firma. A despeito do seu lugar de denúncia, Uma Noite sem Saber Nada faz um jogo de cena curioso até revelar sua real face, mas estagna um pouco quando chega a esse ponto.

Uma Noite sem Saber Nada (A Night of Knowing Nothing, Índia/França, 2021)
Direção: Payal Kapadia
Roteiro: Payal Kapadia e Himanshu Prajapati

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