O mundo em perigo*
Em 2013, O Menino e o Mundo, segundo longa-metragem do cineasta e animador brasileiro Alê Abreu, ganhou notoriedade internacional ao vencer o prêmio de melhor filme em Annecy, na França, o maior e mais prestigiado festival de animação do mundo. Nesse mesmo evento, foi escolhido também como melhor filme pelo voto popular. No ano seguinte, o longa tornou-se a primeira animação brasileira a concorrer ao Oscar da categoria.
Tudo isso faz de Abreu um dos principais nomes da animação no Brasil, seguindo uma carreira há muito tempo dedicada ao trabalho artesanal e cuidadoso de animar para o cinema. Agora, o cineasta lança seu mais novo longa, Perlimps, já em cartaz nos cinemas, também com passagem pelo festival de Annecy dentro da mostra “Sessões Especiais”.
O filme, tal qual o longa anterior, aposta no lúdico para, no fundo, questionar a sociedade atual e especialmente as vicissitudes e crueldades do Homem diante da Natureza. Por outro lado, os traços da animação mais tradicional e mesmo rústicos do filme anterior ganham nuances mais elaboradas no desenho dos personagens e do ambiente onde a história se passa.
Ainda assim, o filme não deixa de lado o tom inventivo que se apresenta tanto na forma como no conteúdo. Seremos apresentados a dois personagens de reinos diferentes, que recebem uma mesma missão na floresta: encontrar os perlimps, criaturas misteriosas que são a única solução para acabar com a guerra que assola o mundo, levada adiante pelos poderosos e temidos Gigantes.
Bruô (voz de Giulia Benite) e Claé (voz de Lorenzo Tarantelli) são também criaturas nada convencionais – possuem um corpo humanóide, mas misturam traços de outros animais, tais como lobo, no caso dela, e urso, no caso dele. Há também outro personagem, o ancião João-de-Barro, interpretado na voz de Stênio Garcia, figura importante para elucidar a missão dos agentes secretos.
Fábula social
Outra diferença sentida neste novo filme é que Perlimps adentra com mais intensidade em um universo fabular muito curioso e rico de detalhes, na medida em que vai apresentando ao espectador este mundo mágico em processo de devastação, comandado pelos Gigantes, com sua sanha de destruição da natureza.
E não é difícil entender que tais figuras inconsequentes são uma metáfora para os seres humanos adultos e intransigentes. As armas de que eles dispõem são espécies de máquinas-monstro que destroem as matas em prol do lucro capitalista. Há, portanto, toda uma dimensão de crítica social inserida na narrativa, de modo muito sutil e melindroso, algo que já estava presente em O Menino e o Mundo.
É como se o filme se apresentasse como uma distopia para crianças, em meio a uma atmosfera de espionagem em que Claé e Bruô precisam deixar de lado as diferenças – um pertence ao reino do Sol, o outro da Lua – a fim de dar um fim à destruição daquele mundo onde muitas criaturas diferentes coexistem e deveriam habitar em harmonia.
Apesar do tom apocalíptico, Perlimps apresenta um visual deslumbrante. Abreu não economiza nas luzes e nas cores, tendo a floresta como este reduto prestes a ser destruído, mas ainda repleto de beleza e mistério. É nesse ambiente exuberante, mas também desconhecido – porque extrapola os limites dos reinos onde eles vivem – que os dois precisam deixar de lado suas diferenças para ajudar a acabar com a guerra.
No final das contas, os perlimps são o objetivo de busca da missão, mas também funcionam como um motivo metafórico, já que não sabemos ao certo o que são e como eles poderiam, de fato, evitar o extermínio da fauna e flora. Daí a pergunta que o filme nos faz: quem é capaz de acabar com uma guerra? Qual atitude tomar diante da possibilidade de destruição do mundo?
Aventura deslocada
É certo que o filme aposta em um senso de aventura que faz parte das tramas de espionagem, como este se desenha. No entanto, Perlimps se esmera tanto em construir um visual estonteante que deixa de lado o impulso narrativo da aventura. Claé e Bruô estão o tempo todo em cena e praticamente não encontram mais ninguém no caminho – apenas o João-de-Barro já na parte final do filme.
Todas as interações dos dois personagens são apenas entre si. Eles possuem os seus desentendimentos, encontram obstáculos pelo caminho, precisam cruzar informações – que lhes chegam por meio de uma espécie de rádio transmissor – e entender o que está acontecendo no mundo. Mas eles mesmos se bastam para resolver os problemas, encontrar soluções e avançar na missão apenas conversando entre si e tirando suas próprias conclusões.
O filme, portanto, esbarra no problema da falta de interação. Na medida em que os personagens estão praticamente isolados na trama, a aventura se torna um tanto maçante porque ela acaba tendo um mesmo tom sempre, sem altos e baixos. Enquanto nos deslumbramos com as cores, o filme não cria nuances distintas na própria camada da história.
Apenas no final da trama, quando as coisas se revelam mais problemáticas e difíceis de resolver, o filme oferece uma última cartada que modifica não apenas a missão dos protagonistas, como o próprio jogo de cena que se desenvolvia até ali. Aí Perlimps revela de modo muito mais evidente aonde quer chegar, questionando diretamente o espectador sobre qual a sua função no mundo. Afinal, somos os próprios humanos que estão destruindo o Planeta Terra.
Perlimps (Brasil, 2022)
Direção: Alê Abreu
Roteiro: Alê Abreu
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 11/02/2023)