Triângulo da Tristeza

A burguesia fede*

É notável como certo cinema grotesco tem se destacado e sendo reverenciado no campo cinematográfico mundial. Não um cinema “do” grotesco porque não é o caso de tomar o tema como algo questionável (como elemento próprio ao ser humano, o grotesco, assim como a estupidez, a hipocrisia, a crueldade, são todos dados do mundo e devem mesmo aparecer nos filmes). Mas há uma maneira muito rasteira de tratar o grotesco dentro da narrativa fílmica, criando um circo de horrores que se basta apenas por ser circo. E para que possamos rir da desgraça alheia, enquanto nos sentimos seres superiores aos personagens.

É justamente isso que faz Triângulo da Tristeza, novo filme dirigido e escrito pelo sueco Ruben Östlund, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes ano passado, já está em cartaz nos cinemas. O prêmio não é algo a se desprezar porque se trata de sua segunda Palma, seguida à de The Square – A Arte da Discórdia anos atrás, filme que segue o mesmo tipo de proposta “denuncista” das falhas humanas.

Isso só demonstra o quanto esse tipo de cinema acusatório e de dedos apontados faz sucesso no cenário internacional do cinema. Östlund é o típico caso do cineasta que pensar estar fazendo um grande estudo humano quando não consegue perceber seu papel de senhor de marionetes.

Para começar, ele elege um casal que vive no mundo da moda. Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean, atriz morta precocemente no ano passado) são jovens modelos fotográficos disputando seu espaço nas passarelas e campanhas publicitárias. Eles desfilam e mais brigam do que se amam de fato; ela também é dessas influenciadoras digitais para quem curtidas e número de seguidores são moeda de troca.

Nada mais fácil para o filme do que atacar a futilidade desse tipo de personagem, justamente associando-os à superficialidade da moda. Se ambos demonstram uma química interessante no início do longa, este é apenas uma forma jocosa de mostrar o quanto eles são mesquinhos um com o outro (como se vê na cena da discussão sobre quem deve pagar a conta do restaurante).

Elegância e decadência

Mas eis que o casal ganha uma viagem num cruzeiro de luxo, cercado de passageiros milionários e esnobes, além dos empregados desconfiados e da tripulação gananciosa, ainda que explorados como subalternos. O que se segue a partir daí é uma coleção de momentos constrangedores dos ricaços fazendo “burguesices”, proferindo absurdos de classe ou se portando como crianças mimadas apenas porque querem ser servidos.

Há, por exemplo, um casal de idosos cujo marido é um grande empresário do ramo de armamentos; um solteirão solitário e com dinheiro saindo pelos ouvidos; uma dondoca que dá ordens estranhas para os empregados; e, claro, o estranho comandante do navio (interpretado por Woody Harrelson) que aparece mais bêbado do que sóbrio e, por vezes, recusa-se a sair do seu quarto para assumir o controle do navio.

É um conjunto excêntrico de pessoas e Östlund não poupa ninguém da ignomínia. Serão todos pintados como criaturas desprezíveis, sempre pontuado pelo humor mais escrachado do cineasta, quando não escatológico mesmo. Não demora muito para que a festa da fineza e da ostentação vire enterro porque as situações escalam para um nível maior de bagunça e baixeza.

Östlund possui, é importante reconhecer, um senso aguçado para a comédia, um tato para o nonsense que rende cenas realmente engraçadas – especialmente nos primeiros minutos do filme (a brincadeira com a diferença de grife da Balenciaga e da H&M, por exemplo, é hilária). Desde as primeiras exibições em Cannes, registra-se que o público de fato ri muito com o filme (mesmo que pelos motivos errados). Porém, é uma pena que ele utilize tal habilidade em prol de um humor que vai se mostrar tão rasteiro até o fim da projeção.

Castigo de classe

O maior problema conceitual desse tipo de tratamento voltado para o humor mais ácido é que Östlund, ao olhar para essas pessoas de modo tão abjeto, arma-se de uma prepotência julgadora e superiora. E faz isso buscando a cumplicidade do espectador que se regojiza com todo aquele desastre armado que se quer hilário.

O fato de se tratarem de pessoas de uma classe social abastada parece permitir ao filme todo tipo de castigo que é possível acontecer num cruzeiro em alto mar, a partir das muitas excentricidades que se acumulam ali entre aqueles indivíduos. E, com isso, vem o aval para que o público também se divirta com aquilo. Há até uma tentativa de explicar o desastre humano enquanto ele se arma diante de nossos olhos, mas interessa mesmo ao filme apenas achincalhar aqueles indivíduos.

É uma pena que o diretor tenha enveredado por esse caminho. Antes das Palmas de Ouro, ele lançou o ótimo Força Maior, filme que também zombava de certa elite estúpida. No entanto, o protagonista se dava conta do seu ridículo e buscava, de alguma forma, consertar seus erros e se redimir diante das falhas, mesmo que de forma ainda infantil. Aí o indivíduo se revela em sua fragilidade humana e não apenas no que tem de bufão.

Em Triângulo da Tristeza, por sua vez, nada passa do superficial. É um filme de quase três horas de duração em que o diretor não consegue criar nuances ou camadas para nenhum personagem – até mesmo uma das empregadas do navio, que no terço final da trama ganha um curioso destaque e um posto de poder, é pintada como alguém sem escrúpulos e vingativa. Para Östlund, a burguesia fede e isso é menos um problema e mais um motivo para dar algumas risadas.

Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness, Suécia/França/Reino Unido/Alemanha/Turquia/Grécia/ EUA/Dinamarca/Suíça/México, 2022)
Direção: Ruben Östlund
Roteiro: Ruben Östlund

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 19/02/2023)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos