Projeto Viva Cinemateca / Entrevista com Maria Dora Mourão e Gabriela Queiroz

Nossa Cinemateca*

Depois do incêndio que atingiu um dos galpões da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, em meados de 2021, muitos olhos se voltaram para esse que é um dos mais importantes centros de preservação e memória do cinema nacional. Um verdadeiro patrimônio que, no último governo, foi deixado às traças, literalmente, tendo ficado um ano e meio fechada e inoperante, colando em risco o delicado acervo que a Cinemateca abriga.

Fundada em 1946 por diversos intelectuais ligados ao cinema, com maior destaque para o crítico Paulo Emílio Sales Gomes, a instituição está prestes a completar 77 anos de atividade em 2023. É uma das mais importantes da América Latina, junto com a do México, e possui um acervo com mais de 42 mil títulos de filmes e 70 mil documentos impressos diversos.

Mas é tempo de boas novas e a Cinemateca conseguiu se reerguer do ano passado para cá. Hoje, a instituição comemora sua reestruturação e o apoio financeiro conseguido tanto do governo federal, quanto de instituições parceiras. Com isso, a Cinemateca Brasileira reuniu a imprensa na última quarta-feira, 7, para anunciar o Projeto Viva Cinemateca, uma série de ações, tanto internas, como a ampliação da sua sede, mas também atividades de itinerância que devem levar mostras de filmes para outros Estados brasileiros, incluindo a Bahia.

“A Cinemateca sempre foi criticada por alguns por ser considerada uma instituição de São Paulo e não do Brasil. Um dos nossos objetivos é mostrar que a Cinemateca é brasileira. Então, queremos levar um pouco da Cinemateca à maior parte dos Estados brasileiros, com a mostra de filme e também uma exposição fotográfica da linha do tempo da Cinemateca”, afirma Maria Dora Mourão, atual diretora geral da instituição.

Maria Dora é professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), mas já fez parte do órgão de conselho da instituição e esteve por algum tempo à frente da Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), hoje uma Organização Social (OS), que sempre apoiou e acompanhou as atividades da instituição de perto.

Crises

“A crise não é recente, ela se iniciou em 2013, impedindo a Cinemateca de funcionar completamente. De lá pra cá, nós continuamos presentes, mas sem poder fazer muita coisa. Quando se deu o fechamento da Cinemateca nos últimos anos, nós começamos a dialogar com o governo federal”, pontua Dora. “Mas mesmo assim, a Cinemateca ficou fechada por um ano e meio, com todos os riscos que corriam, por conta do acervo muito sensível e pela inoperância e falta de manutenção dos equipamentos”, complementa a diretora.

Apenas no final de 2020, a SAC entrou na Cinemateca para uma ação emergencial, a fim de conferir o estado das coisas e, em 2021, venceu o edital de convocação do governo para gerir a Cinemateca, com um contrato de cinco anos.

Maria Dora conta que os desafios foram muitos nesse início, com a necessidade de reforma nas instalações – o teto de um dos galpões estava furado, por exemplo, então chegava a chover em cima das latas de filmes, sem falar na história de uma aranha que descobriram morando dentro de uma das copiadoras da Cinemateca.

“Mas nós enfrentamos a batalha e realmente nos reerguemos. Eu tenho muito orgulho da equipe que se formou, tanto de antigos funcionários, quanto de novos. A Cinemateca faz parte da minha formação, Paulo Emílio foi meu professor. Há uma relação afetiva com isso tudo”, comenta Dora. Hoje, entre técnicos especializados e a equipe administrativa, a instituição conta com 90 funcionários. Mas Dora destaca a necessidade de crescer esse quadro, assim como de uma reforma e ampliação de suas instalações.

Continuidade

O Jornal A Tarde foi convidado para acompanhar o lançamento das novas ações da Cinemateca e ainda visitar a sede, que fica no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. Se a ideia geral de muita gente é que a Cinemateca funciona apenas como espaço onde se guarda filme velho, uma rápida passagem por seus muitos espaços mostram a dimensão do trabalho que se faz em muitas frentes ali dentro.

A Cinemateca trabalha com preservação, restauro, difusão, formação e documentação. Além dos filmes em si, muitos deles dos primórdios do cinema brasileiro, e de conteúdo audiovisual de modo geral, como material televisivo, há ainda um vasto acervo de jornais, livros e fichas oficiais das produções. A gestão atua destaca a importância de manter todos essas atividades funcionando ao mesmo tempo, de modo conjunto e interdependente, algo que eles estão conseguindo fazer atualmente.

Mas não é fácil manter tudo isso. “Nós possuímos a melhor infraestrutura técnica para cuidar e preservar esse material”, afirma Gabriela Queiroz, diretora técnica da Cinemateca. “Desde o depósito de guarda até os laboratórios para fazer a duplicação, migrando esses suportes, sem nunca se desfazer do original, essa é uma cadeia extensa. Uma paralisação de 16 meses desse processo foi inacreditável”, complementa.

Gabriela destaca, por exemplo, o acervo de películas em nitrato que a Cinemateca possui. Do início do século passado até meados dos anos 1950, as películas de filmes eram feitas com o uso desse material altamente inflamável. Todo esse conteúdo que a Cinemateca possui está guardado em galpões específicos para mantê-los preservados e evitar acidentes e perda do material.

Esse é, aliás, um dos principais projetos da instituição hoje: trabalhar com o material de nitrato, já que muita coisa não foi tratada e restaurada devidamente. “Além das demandas antigas, existem as novas demandas. Ainda há muitos filmes em nitrato por aí e, quando são descobertos, a primeira instituição que vem à cabeça é a Cinemateca, pela expertise em trabalhar esses materiais e de outros também”, observa Queiroz.

Agora, com a reestruturação da Cinemateca e o aporte financeiro do governo federal e das empresas parceiras, a instituição pretende aumentar seu quadro de funcionários, reformar e ampliar sua estrutura física e levar adiante os seus projetos. Mais de 140 mil pessoas já visitaram a Cinemateca desde sua reabertura ano passado até hoje. A itinerância de filmes deve começar no segundo semestre do mês. “Se as pessoas estão vendo os filmes hoje, é porque foi preservado pela Cinemateca”, arremata Dora. Renascida das cinzas, a Cinemateca vive.

*O jornalista viajou a convite da Cinemateca Brasileira.

**Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 09/06/2023)

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