A Pequena Sereia

Sob águas já exploradas*

Quando anunciaram que a icônica sereia ruiva Ariel seria interpretada por uma mulher negra na nova releitura de A Pequena Sereia no filme em live action, a internet veio abaixo. De um lado, comemorou-se a iniciativa que traz diversidade racial para as telas, mas houve também muita reclamação e ataques racistas sofridos pela jovem atriz Halle Bailey.

É certo que essa posição reacionária não combina mais com a necessidade de revigorar os clássicos a partir de perspectivas contemporâneas – o filme da Barbie vem aí e promete tensionar ainda mais tais questões. E é justamente isso que a nova produção da Disney faz, porém sem explorar essa discussão a fundo, na própria trama do filme. É como se o debate estivesse ao redor da escolha do elenco, que conta com outras atrizes não-brancas, perfazendo um reino de sereis multirraciais, mas ficasse apenas nisso.

Este live action de A Pequena Sereia serve para apresentar ao público mais jovem a mesma história do desenho lançado em 1989, agora em carne e osso – os atores são reais, mas estão rodeados por quilos de CGI e de efeitos especiais. É realmente deslumbrante os cenários do fundo do mar, com seus múltiplos detalhes e a explosão de cores que tornam o reino das sereias fascinante. Os movimentos embaixo da água são também muito realistas, padrão que Avatar colocou lá em cima.

O longa é conduzido pelas mãos de Rob Marshall, diretor de filmes como Chicago, Caminhos da Floresta e do musical Nine. Ele também entende de releituras, tendo feito O Retorno de Mary Poppins. A maioria de seus filmes, no entanto, possui muito de espetacular, com números musicais muito bem coreografados, mas pouco de conteúdo no geral.

A Pequena Sereia segue o mesmo caminho do visual de maravilhas que cerca o mundo marinho. No final das contas, é uma adaptação competente na medida em que não subverte o clássico e busca manter o mesmo tom de encantamento e algum senso de perigo, misturado com um tanto de melodrama juvenil.

Fascínio pelos humanos

Ariel, com toda sua ingenuidade e pureza, continua fascinada pelos humanos e por tudo aquilo que vem do mundo fora das águas – ela tem uma espécie de sala de troféus onde recolhe todo tipo de bugiganga que cai no mar, um museu onde sonha com um universo muito diferente do seu.

Ela vive sob a proteção do pai viúvo, o rei Tritão (Javier Bardem) que tenta protegê-la a todo custo, mantendo-a distante do bárbaro mundo dos humanos, muito porque sua esposa e mãe da sereia foi morta por piratas tempos atrás.

E a trupe dos aventurosos marinheiros é o maior contato que as sereias possuem com os humanos, o que não garante uma relação muito amistosa entre eles, uma vez que as belas sereias encantam os humanos, mas mais como valioso objeto de pesca. Apesar disso, Ariel vai se ver atraída pelo príncipe Eric (Jonah Hauer-King), que passa os dias navegando junto aos piratas, e é salvo pela sereia depois que seu barco naufraga nas perigosas águas do alto mar. Ele também se enamora por ela, mas desconhece esse ser misterioso e belo que o salvou.

A busca de Ariel se coaduna com os planos de sua tia Úrsula (Melissa McCarthy), uma mulher-polvo renegada pelo seu irmão e rei, condenada a viver nas regiões abissais e subterrâneas do mar. Ela provoca Ariel a desbravar um mundo novo e lhe promete uma forma humana em troca de sua voz e da possibilidade de resgatar seu lugar na realeza. É a típica vilã dos filmes da Disney, maquiavélica e maniqueísta, que busca poder e vingança.

McCarthy parece ter nascido para esse papel, apesar de nenhum traço de comédia, e é certamente uma das melhores atuações do filme. Enquanto isso, os animais digitais garantem o alívio cômico já que acompanham Ariel o siri Sebastião (voz de Daveed Diggs), a gaivota Sabidão (voz de Awkwafina) e o peixe Linguado (voz de Jacob Trembley), todos meio atrapalhados.

Sem subversão

Se o debate racial de representatividade rondou os bastidores do filme e fica sugerido ali na escalação dos atores – a última e única vez que um filme da Disney teve uma princesa negra foi em A Princesa e o Sapo, de 2009 –, A Pequena Sereia aposta na nostalgia. Parte do público vai rememorar o clássico e todos, incluindo os novos espectadores, irão se encantar pelos mundos em colisão que representam a trajetória da garota que quer se emancipar.

Ariel está mais obcecada em descobrir o mundo para além do mar do que necessariamente encontrar um par romântico. Isso, que poderia ser uma mudança mais radical no tratamento da personagem, também não é muito acentuado pela trama. Ou seja, Marshall apostou mesmo no clássico mais puro, sem muito de subversão, ao adaptar com fidelidade o conto do escrito dinamarquês Hans Christian Andersen, base de todas as histórias da serei princesa que quer ser humana.

Até mesmo os números musicais vão do insosso ao correto, sem grande empolgação – com exceção, talvez, do “Kiss the Girl” –, apresentando personagens e seus dilemas, quando não servem apenas para preencher o tempo da narrativa. Há alguns mais icônicos, como “Under the Sea”, performado pelo siri e “copiado” como homenagem à animação original de 1989.

Se existe algo que extrapola um tanto a visão conservadora que os desenhos da Disney sempre tiveram, isso se dá pela via do enredo sobre um amor impossível. Mas é menos pelo viés racial – a mãe do príncipe Eric, por exemplo, é uma mulher negra –, mas da própria constituição do sujeito. Sereias e humanos podem se relacionar? Apostar numa resposta positiva é a forma de A Pequena Sereia lidar com a discussão sobre a aceitação das diferenças, o que não é nada novo, inda mais usando uma roupagem clássica e de encantamento audiovisual.

A Pequena Sereia (The Little Mermaid, EUA, 2023)
Direção: Rob Marshall
Roteiro: David Magee

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 28/05/2023)

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