Sem Ursos

Perigos à espreita*

Jafar Panahi possui uma trajetória peculiar, e também trágica, no cinema contemporâneo: acusado e censurado pelo duro governo de seu país pelos filmes que criticavam certo estado de coisas no Irã, foi proibido de filmar e também de deixar o país, além de ter sido preso algumas vezes, tanto em centros de detenção quanto em prisão domiciliar. Da última vez, ficou preso por sete meses, tendo sido solto em fevereiro deste ano, com permissão a visitar a França depois de 14 anos sem poder sair do Irã.

Não é uma vida fácil para os cineasta e artistas iranianos, mas Panahi, até então, tem conseguido um feito impressionante: mesmo com a proibição, continua fazendo filmes, que têm espaço cativo nos grandes festivais de cinema, ganhando diversos prêmios sempre. Este é o caso de Sem Ursos, seu último longa-metragem que estreou no Festival de Veneza, em 2022, de onde saiu com Prêmio Especial do Júri.

Desde que foi preso pela primeira vez em 2010 e impedido de fazer filmes, o cineasta tenta burlar essa restrição com a ajuda de colaboradores que passam a finalizar seus filmes a partir da sua orientação. Mas hoje ele já assina a direção das suas produções livremente. Mais que isso, seu cinema acabou se tornando altamente metalinguístico e autobiográfico, um campo fértil para se discutir noções como aprisionamento e liberdade, seja artística ou mesmo de circulação física.

Agora que ele pode circular pelo país, Panahi tem feito cada vez mais filmes no interior, usando as histórias das pessoas que ele encontra pelo caminho como metáforas para a sua própria condição. Em Sem Ursos, ele interpreta a si mesmo (ou um personagem que carrega o seu nome e é também cineasta) que está em uma vila no interior do Irã, já na fronteira com a Turquia.

Ele está dirigindo um filme à distância. Com a ajuda da tecnologia, visualiza o set de filmagens a partir de um monitor, já que atores e técnicos estão filmando na cidade turca fronteiriça, onde ele não pode estar. Com transmissão sonora com a equipe, ele vai dando instruções e direcionamentos aos atores e demais integrantes do time. Era assim que Panahi chegou a filmar no passado, quando suas restrições eram maiores, mostrando o nível de resistência que passou a guiar o seu trabalho nos últimos anos.

Além disso, ele está filmando a história de um casal que está no Irã, mas quer migrar ilegalmente para a Europa. Para isso, eles precisam conseguir passaportes falsos, o que não é um processo fácil. O homem e a mulher entram em desentendimento constante, e se coloca em questão a dignidade das pessoas diante de uma fuga ilegal.

Com isso, o filme espelha a própria situação de Panahi diante da possibilidade, ou não, de conseguir escapar de um país que tenta lhe tolher os direitos como cineasta. Após uma pausa nas filmagens em seu difícil processo, Panahi encontra um de seus técnicos, e ele lhe apresenta uma possibilidade de cruzar a fronteira para a Turquia ilegalmente, o que deixa o cineasta um tanto perturbado com a ideia de romper as leis. Tudo é muito complexo nesse jogo de espelhos que colocam em xeque a moral dos homens e a crueza dos regimes autoritários.

Tradição e perigo

Além disso, na trama, o diretor vai ainda se deparar com uma situação mais complicada, aumentando as camadas morais que o filme elabora. Como cineasta e fotógrafo, Panahi costuma tirar fotos das paisagens interioranas e das pessoas da vila que lhe acolheu ternamente nos últimos dias.

Porém, surge um boato de que ele teria fotografado, sem saber, um casal na rua que não poderia ser visto junto. Dizem que eles estariam apaixonados, mas a moça já estava prometida, desde o seu nascimento, a se casar com um outro pretendente, da mesma família, dada uma antiga tradição daquele lugar de oficializar futuros casamentos assim que as crianças nascem.

Com isso, Panahi teria na sua câmera fotográfica uma prova de adultério, crime gravíssimo no Irã e que, naquela comunidade, tem ainda mais peso. O diretor passa a ser assediado pelos chefes locais e também pelo primeiro noivo da moça que se sente traído e desmoralizado com a situação.

Com isso, Sem Ursos deposita na história mais uma camada que coloca em questão as tradições da cultura iraniana, suas leis internas, mediadas também pela força da religião mulçumana, diante da modernidade das relações e da liberdade de escolha dos indivíduos, sejam as mulheres nos seus casamentos, sejam os artistas no seu trabalho cotidiano.

Os ursos do título são uma outra metáfora curiosa: existem alguns caminho ao redor daquela vila que devem ser evitados por conta dos boatos de que existiram ursos por aquele lugar, o que parece uma ideia absurda. Mas Panahi busca interrogar: quais são os verdadeiros ursos que barram os caminhos? Interpostos a que tradições defasadas e a que leis injustas o povo iraniano vai continuar sendo ameaçado e censurado? Não há respostas fáceis, e Panahi mostra que o enfrentamento é necessário, mas por vezes muito cruel para quem ousa encará-lo.

Sem Ursos (Khers Nist, Irã, 2022)
Direção: Jafar Panahi
Roteiro: Jafar Panahi

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 28/05/2023)

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