Olhar de Cinema: Casa Izabel

Homens se reúnem numa casa para se vestirem de mulher livremente. Não é um lugar para encontros sexuais, apenas para que estes sujeitos possam criar para si uma persona feminina e viverem aquela fantasia por alguns dias, desenvolvendo uma espécie de convívio de comadres. Longe dos olhares da sociedade, numa propriedade rural afastada e em plenos anos 1970 de um Brasil que vivia a Ditadura Militar, este seleto grupo faz da Casa Izabel um refúgio, mas também um lugar de projeções que não são apenas de

O novo filme de Gil Baroni (que não poderia ser mais diferente que seu longa anterior, a comédia adolescente Alice Júnior) revela muito de provocador com essa trama, mas se engana quem imagina que o filme explora apenas os desejos reprimidos dos homens, agora libertados de certas amarras sociais. As pessoas que formam aquele grupo ali – o filme começa como uma novata chegando ao clube, servindo como forma de apresentação daquele lugar e de seu funcionamento – possuem intenções e propósitos muito diferentes entre si, contrariando a própria ideia de libertação de gênero a partir da invenção de um outro.

É como um jogo de encenações: assim que chegam, os homens precisam encarnar seu vestuário de mulher e falar sempre no feminino, esquecendo-se de sua e das outras identidades masculinas. Mas o que vemos no decorrer do filme é que as projeções masculinas de alguns deles continuam a guiar suas atitudes, colocando em evidência as mesmas engrenagens de opressão, violência e autoridade.

Enquanto Regina (interpretada por Andrei Moscheto) tenta se encaixar no grupo que ela acabou de conhecer, as demais projetam os seus desejos a partir de experiências burguesas que elas ainda reproduzem: senhoras que estão ali para serem servidas, não contrariadas, e satisfeitas nas suas vicissitudes. Enquanto isso, na cozinha, Leila (Jorge Neto), única personagem negra ali, cuida dos afazeres domésticos a mando de sua mãe (Laura Haddad) e cujo pai (Luís Melo) é a própria Izabel, dona da propriedade, identidade feminina decrépita que, reclusa no seu quarto, dá ordens aos demais enquanto definha.

Com isso, o filme se abre para uma série de discussões que colocam em pauta, ainda, os desmandos patriarcais do país, suas dimensões políticas (inclusive de modo implícito, já que há a sombra de militares e um militante político desaparecido que rondam e até mesmo guiam os caminhos da trama) e os entraves sociais que revelam os intentos e instintos daquelas pessoas ali. O maior problema de Casa Izabel, aliás, parece ser a dificuldade de consolidar bem as muitas tramas e subtramas que surgem dali.

Curiosamente, um dos personagens diz à mesa: “nós não falamos de política aqui dentro”. Mal sabe ele que seus próprios atos configuram por si só posições políticas que reconfiguram os modos de convivência e comportamento, ainda que o façam de modo escondido, longe da “sociedade”. Mas se há nos personagens essa recusa, não é o mesmo gesto do filme em si, que entende muito bem a carga política que ronda a narrativa.

E para além das regras implícitas e da posição do filme em relação a seus temas, a própria história caminha para a o rompimento desses padrões quando os personagens não conseguirem sustentar uma identidade que deixe para trás sua identidade masculina. Ao contrário, alguns deles continuam fortemente ligados a ela. Uma das atividades de lazer que eles fazem é sair para caçar, empunhando longas espingardas de tiro, além dos impulsos sexuais de um dos personagens aflorar em certo momento em direção à única mulher da casa.

Com isso, o filme faz romper a ideia que a própria história cria em torno da fabulação. Assim que chega, Regina é aconselhada a “manter a fantasia”, criando personagens e eventos em torno dessas mulheres que só existem ali naquela casa. Mas a história viva do país, as tensões que cada um traz, em nível pessoal ou social, são mais fortes e atravessam a trama, quebrando o romantismo da fantasia, de modo até mesmo brutal.

A composição estética do filme é a única que mantém o seu aspecto fabular, quase etéreo, com uma fotografia embaçada, uma trilha sonora onipresente (até demais), figurinos super vistos, que vão do fino ao extravagante e estranho, passando pelo formato de tela mais quadrado que remete às fotografias do projeto Casa Suzana, que resgatam desse mesmo tipo de lugar que existiu de fato nos Estados Unidos nos anos 1960. Casa Izabel é uma reconfiguração e adaptação brasileira desse ideal de liberdades, mas visto com lentes mais duras e cruas que a nossa própria História impõe.

Casa Izabel (Brasil, 2023)
Direção: Gil Baroni
Roteiro: Luiz Bertazzo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos