Sob a batuta do cancelamento*
Lydia Tár conquistou uma posição de destaque no mundo da música clássica: compositora e regente de sucesso, é a primeira mulher a assumir a direção de uma grande orquestra, a Filarmônica de Berlim, depois de ter passado por diversas grandes casas de música nos Estados Unidos. Prepara-se exaustivamente, junto a seus músicos, para a gravação ao vivo da 5ª Sinfonia de Gustav Mahler, sob sua regência, além de estar prestes a lançar um livro de memórias.
Tár, novo filme do cineasta norte-americano Todd Field, funciona como uma cinebiografia dessa mulher de sucesso, não fosse ela uma personagem fictícia. Além disso, o filme não é necessariamente sobre a música clássica, mas antes sobre os jogos de poder e as cartas que a protagonista tem nas mãos, dada a autoridade conquistada ao longo da carreira.
O filme poderia também assumir um lugar de elogio ao sucesso feminino, na medida em que eleva a personagem ao topo de destaque dentro de um universo profissional sabidamente dominado por homens. No entanto, o longa vai desenvolver um debate sobre assédio (sexual e moral), tendo como agente controverso a própria Lydia.
Ou seja, Tár poderia ser muita coisa (inclusive, um caminho de biografia convencional, já que está centrado na figura de uma personalidade de sucesso), mas vai revelando, em pequenas doses, suas intenções bem mais sedimentadas na sutileza das relações de força ao redor dessa mulher.
O filme está indicado em seis categorias do Oscar, incluindo Filme, Direção e Roteiro – um feito e tanto para um cineasta que praticamente sumiu do cenário cinematográfico por 16 anos (desde que lançou Pecados Íntimos em 2006). Field também assume o roteiro do longa que adentra com muita segurança no universo da música, o que revela a intensa pesquisa feita pelo diretor.
Mas a maior chance de vitória do filme no Oscar está mesmo nas mãos de Cate Blanchett, que constrói com muita força e sutileza as nuances dessa mulher de ferro, corroída por suas próprias ambições. Blanchett venceu o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza, ano passado, onde o filme estreou, sedimentando sua campanha para a premiação da Academia. Enfrenta, no entanto, uma concorrente de peso: Michelle Yeoh, do fenômeno Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, hoje o filme mais cotado para vencer a disputa principal do Oscar.
Questão de gênero
Tár abre um debate muito importante e mesmo movediço no campo das disputas de gênero. Lydia é claramente uma mulher de talento que galgou um espaço muito seleto no campo profissional. Mas este é também um lugar de domínio, que ela não se priva de exercer, nunca como uma general mão de ferro, mas de modo mais arguto, tirando certos proveitos disso – para si e para as pessoas próximas.
Lésbica, é casada com Sharon (interpretada pela atriz alemã Nina Hoss), uma violinista que toca na mesma orquestra que Lydia comanda; juntas, elas criam uma filha pequena. É secretariada pela competente Francesca (Noémie Merlant), além de lidar com as demais cabeças que gerem o conservatório.
Em meio a sua posição profissional e diante de toda a carga de trabalho que ela possui (conduz a regência com muita disciplina e conhecimento acumulado, à altura do seu talento), surge no caminho de Lydia uma antiga história do passado: uma aluna do conservatório com quem ela se envolveu antes – emocional e profissionalmente – e que continua permeando o seu imaginário.
Ao mesmo tempo, novas alunas vão surgindo em busca de uma oportunidade, algo que mexe com o emocional da personagem – ou a relembra dos deslizes do passado? Curioso que a jovem violoncelista que chega à orquestra (Sophie Kauer) possui uma postura diferente diante do trabalho e carrega uma leitura muito mais feminista do mundo, algo que a própria Lydia não alcança – há uma cena de confronto com um aluno negro em que ela recusa completamente qualquer tipo de militância a favor da genialidade da música.
Por outro lado, ela fica visivelmente atraída pela moça (no sentido afetivo?). O filme pode não ser muito claro quanto a isso, mas deixa supor uma série de inter-relações que se misturam entre a camada íntima e a profissional da artista. É nesse sentido que Tár joga com o duplo das relações de poder e de gênero, convidando o espectador a adentrar um campo por vezes nebuloso das violências exercidas não pela via da força física, mas pelos desmandos comportamentais.
Jogo de sutilezas
Por um bom temo durante o filme, Field consegue sustentar todas essas questões com muita sutileza, sugerindo atitudes e pensamentos mais que os afirmando diretamente. Os encontros e as conversas dela com os demais personagens deixam perceber certas nuances que já estão claras para todos os envolvidos, mas que apenas agora o espectador está acessando.
A figura dessa garota do passado que acaba se tornando um problema para Lydia, por exemplo, nos é apresentada em conta-gotas, o que nos faz montar um quebra-cabeça emocional muito mais do que apenas reforçar o que teria acontecido de fato anteriormente entre elas (ainda que os fatos sejam resgatados em determinado momento do filme). Importa aqui a maneira como a poderosa Lydia pode sucumbir diante disso tudo.
E é uma pena que todo esse cuidado usado pelo diretor para criar um campo minado ao redor da personagem parece desmontar no terço final do filme. Toda a sutileza se esvai, como se Field não conseguisse mais segurar tanta energia explosiva – não só a direção e o roteiro pesam a mão no didatismo, para o que antes era muito mais sugestivo, como a própria Blanchett entrega-se a uma composição mais furiosa da personagem.
A partir daí, o filme se torna um conto moral sobre a cultura do cancelamento, tema da ordem do dia, tratado com muita superficialidade e saídas fáceis, ainda que trágicas para a reputação de alguém. De todo modo, Tár é um retrato astuto dos ditames do poder em sua esfera mais melindrosa.
Tár (EUA, 2022)
Direção: Todd Field
Roteiro: Todd Field
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 19/02/2023)